Pogacar e Giro, cuidado com o que desejam
Para o Giro, ter Pogacar em prova pode ser um presente envenenado, mas, para Pogacar, correr o Giro pode também trazer problemas. Por agora, todos parecem felizes para a prova que arranca no sábado.
Há dias, escrevia-se no site GCN, especializado em ciclismo, que talvez a modalidade nunca tenha visto neste século uma “grande volta” com um favorito tão óbvio e tão distante de todos os outros como a Volta a Itália 2024, que vai andar na estrada deste sábado até dia 26. E essa ideia pode bem resumir a mentalidade com que fãs, jornalistas, atletas e equipas partem para esta corrida.
E é de uma ironia tremenda que qualquer organizador de uma prova deste tipo queira os melhores ciclistas do mundo, mas que o Giro ter chegado a esse objectivo, conseguindo finalmente o prestígio de Tadej Pogacar, possa acabar por espoletar uma das provas mais aborrecidas dos últimos anos. Será caso para dizer: cuidado com o que desejam.
E também para o esloveno esse poderá ser um bom conselho. Voltar a ganhar a Volta a França é difícil – ele sabe-o bem – e mais difícil ficará depois de correr o Giro, sobretudo se Pogacar se comportar como gosta, que é a atacar em tudo quanto é terreno. Caro esloveno, cuidado com o que deseja.
Alguém capaz?
Nesta prova, aqueles que podem dizer-se capazes de competirem com Pogacar no ciclismo actual vão assistir no sofá: uns por problemas físicos, outros por decisão de não correrem esta prova, para se focarem no Tour – e outros até pelas duas coisas juntas.
Aquilo que de mais parecido há com um rival é Geraint Thomas, que até poderá ser ultrapassado pelo colega Thymen Arensman. Com alguma simpatia, podemos falar de Cian Uijtdebroeks e Dani Martínez, cuja forma já teve melhores dias, ou de Ben O’Connor e Romain Bardet, em boa forma em 2024. Mas falar destes já roça, ainda assim, a larga generosidade.
É que o favoritismo de Pogacar não se desenha apenas pelo nível inferior dos adversários, mas também pelo nível superlativo do esloveno neste início de temporada. Até ver, já somou sete triunfos – entre os quais clássicas como Strade Bianche e Liège-Bastogne-Liège e a Volta à Catalunha.
Para completar o cenário há mais três dados relevantes: um organizacional, um colectivo e um individual. O individual é o que nos diz que ninguém vence Giro e Tour no mesmo ano desde 1998, quando Marco Pantani levou a sua careca montanhas acima. E Pogacar não vai, seguramente, desdenhar uma honra deste calibre. O factor colectivo é o que nos diz que a Emirates leva uma equipa montada por Pogacar, com vários corredores da sua confiança.
Por último, o detalhe organizacional diz-nos que este Giro pareceu desenhado à medida de Pogacar: tem montanha mais “amiga” do esloveno do que a dos últimos anos (menos dura na distância, mas mais explosiva), tem dois contra-relógios e tem ainda uma etapa ao estilo Strade Bianche, prova que Pogacar ganhou há semanas. E o esloveno é, de longe, o "voltista" que melhor se comporta nesse tipo de etapas.
Equilíbrio nos sprints
A talhe de foice, importa lembrar que se o calor é o grande inimigo de Pogacar – e está por provar que assim seja –, então as tardes de suplício em França, que lhe custaram duas Voltas a França, não serão problema na Primavera amena de Itália.
Um detalhe interessante será ver se Pogacar consegue a camisola rosa logo no primeiro dia, que terá algumas elevações, ou, na pior das hipóteses, no segundo, ainda mais duro. Esta será uma previsão audaz, mas ver o esloveno de rosa do primeiro ao último dia do Giro não é uma utopia total.
Em todo o caso, o Giro é forte a deitar favoritos abaixo – literal e metaforicamente. E, por triste que seja para os adeptos sedentos de espectáculo, os possíveis azares parecem ser os principais adversários do esloveno.
Neste Giro 100% em solo italiano haverá ainda uma boa luta nos sprints, já que nomes como Tim Merlier, Fabio Jakobsen, Olav Kooij, Jonathan Milan, Caleb Ewan e Kaden Groves vão andar por lá.
Para o espectáculo também há actores para todos os gostos. As movimentações de ciclistas como Biniam Girmay, Christophe Laporte, Julien Alaphilippe, Michael Woods ou Nairo Quintana podem ser divertidas de seguir.
O lote de portugueses está reduzido a Rui Oliveira, na Emirates. Colectivamente, o português deverá celebrar no final, com o colega Pogacar, e, no plano individual, poderá, em dias de sprints mais caóticos, ficar com as "sobras" como lançador do velocista Molano. É, ainda assim, um cenário improvável.