Activistas detidos na Guiné-Bissau estão incomunicáveis e podem ficar 30 dias na prisão

Ordem dos Advogados apresentou habeas corpus que será discutido na quinta-feira. Mas Luís Vaz Martins diz que nada garante que, se a decisão do tribunal for favorável, o Presidente a cumpra.

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Alguns dos 84 presos na manifestação que foram libertados no domingo DR
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Estão presos sem culpa por causa de uma manifestação pacífica, foram torturados para saber das alegadas razões ocultas por trás de uma manifestação em defesa da democracia e contra o autoritarismo do Estado e, esta terça-feira, quando tudo apontava que iam ser libertados, o processo foi travado e os nove detidos, considerados os líderes do protesto da denominada Frente Popular, vão continuar na prisão.

Segundo soube o PÚBLICO, os nove poderão ficar detidos nos próximos 30 dias sem culpa formada, para dar um sinal de intimidação ao resto da sociedade civil. A Ordem dos Advogados guineense, que assumiu o patrocínio da defesa dos detidos, apresentou um pedido de habeas corpus no tribunal regional de Bissau com vista à libertação dos activistas, entre eles Armando Lona, o líder máximo da plataforma Frente Popular, mas a audição só deverá decorrer na quinta-feira.

“Eles disseram literalmente que os detidos não têm acesso a visitas de qualquer tipo, mesmo visitas dos advogados”, explicou ao PÚBLICO o presidente da comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados. Luís Vaz Martins teme que mesmo que o tribunal de Bissau decida favoravelmente o habeas corpus essa decisão acabe por redundar em nada.

“Mesmo que o tribunal venha a considerar que a detenção não cumpriu os requisitos, ninguém garante que o Ministério do Interior e Sissoco acatem [a decisão judicial]”, sublinha o advogado, referindo-se ao Presidente guineense, Umaro Sissoco Embaló. Por isso, o advogado acredita que os nove possam mesmo passar um mês na cadeia.

“Aqueles são os visados, são as lideranças que Sissoco quer ‘repreender’ e é provável que isso dos 30 dias esteja a ser equacionado, porque, aliás, seria semelhante ao que aconteceu com os presos dos processos do 1 de Fevereiro, 1 de Dezembro e mesmo em relação aos ministros e secretários de Estado que foram presos e cuja prisão não obedeceu a quaisquer requisitos”, referiu Luís Vaz Martins. “Faz parte da estratégia de Sissoco de espalhar o terror.”

Este é mais um exemplo da deriva autoritária do poder na Guiné-Bissau, levada a cabo pelo chefe de Estado, que subjugou os diferentes poderes à sua vontade, demitindo o Governo democraticamente eleito, destituindo a Assembleia Nacional Popular à margem da Constituição e subjugando o poder judicial. Também os direitos à manifestação, à liberdade de expressão e de imprensa passaram a ser grandemente controlados e punidos.

Desde que assumiu o multipartidarismo em 1993 que a Guiné-Bissau vive crises políticas e militares cíclicas, sem nunca ter tido estabilidade para consolidar as suas instituições democráticas. “A situação piorou com a chegada do actual Presidente, que rapidamente esvaziou todos os poderes da democracia e passou a ser a única instituição a dirigir o país”, diz ao PÚBLICO o investigador guineense Rui Jorge Semedo, do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto.

Por isso, diz o analista, toda esta situação – a violência com que as autoridades trataram manifestantes pacíficos, os 93 detidos apenas por exercerem o seu direito a expressar a sua opinião e os nove que vão permanecer um mês na cadeia sem culpa formada – “não surpreende ninguém”. Tratando-se de “um poder político que, desde que chegou ao poder, restringe a liberdade dos cidadãos”, os activistas que “decidiram sair à rua no dia 18 já foram com a consciência daquilo que poderia vir a acontecer e aconteceu”.

Para o investigador, isto só “demonstra o medo que o poder político tem” das opiniões discordantes, as opiniões que chocam com a narrativa que o Presidente gosta de fazer passar interna e externamente, em discursos sem contraditório e sem direito a perguntas dos jornalistas. Porque o chefe de Estado e o Governo de iniciativa presidencial não parecem gostar de prestar esclarecimentos aos jornalistas.

Na segunda-feira, o secretário de Estado da Ordem Pública, José Carlos Macedo Monteiro, disse apenas “Não, não falo” e desligou o telefone logo depois de o jornalista do PÚBLICO se identificar. Esta terça-feira, o ministro do Interior, Botche Candé, não atendeu o telefone, nem respondeu à mensagem enviada por WhatsApp para o seu número.

O que os nove integrantes da Frente Popular estão a sentir na pele agora é um poder arbitrário que os deteve, porque se manifestavam, que os torturou para saber das suas relações com o PAIGC, o partido maioritário que ganhou as eleições legislativas do ano passado, mas de quem o Presidente não parece gostar, tendo em que conta que por duas vezes, desde que está no poder, demitiu governos do partido liderado por Domingos Simões Pereira, apesar de os mesmos serem reflexo da vontade do povo expressa nas urnas. Um poder que parece não querer saber de direitos, só de deveres.

A Frente Popular (FP), movimento social que congrega várias sensibilidades da sociedade civil guineense, sublinha que fez tudo para garantir a legalidade dos protestos marcados para diferentes localidades do país. “A realização desta manifestação nacional pela FP cumpriu com todos os procedimentos impostos pela Lei de Manifestação e de Reunião, tendo sido informados o Ministério de Transportes e Comunicações, a Câmara Municipal de Bissau e o Ministério do Interior, cujos serviços recusaram receber a missiva informativa”, escreve a plataforma. Cumpridas essas formalidades, a verdade é que as autoridades agiram como se nada fosse: “Vários cidadãos e dirigentes do movimento foram arbitrariamente presos, para além de lhes serem negados qualquer contacto com familiares e/ou advogados.”

“Eles saíram à rua como se de uma guerra se tratasse”, exclama Rui Jorge Semedo, para quem estamos perante um caso de “abuso de poder” por parte das autoridades guineenses em relação à sociedade civil. “Espancaram as pessoas, levaram-nas para uma cela construída ainda durante o tempo colonial [na segunda esquadra, junto ao Ministério do Interior, em Bissau], que hoje, no contexto democrático, no contexto moderno, não deveria ainda receber pessoas, mas, infelizmente, os governos nunca se dignaram a acabar com aquilo e tem sido utilizado como local de tortura. Ou seja, ainda continuamos a usar a mesma estratégia, os mesmos mecanismos usados durante o período colonial.”

Há relatos de braços e mãos partidos, violência exercida para obter confissões de ligação ao PAIGC, arbitrariedades cometidas por já não haver Estado de direito na Guiné-Bissau. O PÚBLICO teve acesso a radiografias de um dos 84 activistas libertados no domingo que mostram fracturas num dos braços e nos dedos.

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Radiografia de um dos activistas que mostra a fractura no braço e em dois dedos

“[O Estado de direito] não existe, por isso é que alguns cidadãos comprometidos com a construção desse edifício estão a lutar, sabendo das consequências, sabendo dos riscos”, acrescenta o investigador. Uma das que já sentiram o resultado da sua participação na manifestação foi a jornalista Julinha Sana Sambu. Depois de detida e libertada, foi suspensa do trabalho na Televisão Nacional da Guiné-Bissau.

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