Portugal tem um problema sério com o álcool

Bebe-se muito em Portugal (como em quase toda a Europa), cada vez mais cedo e a dependência do álcool quase quadruplicou em dez anos.

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Tratar quem bebe com elevadas doses de paternalismo e proibicionismo é perder essas pessoas à partida CSA-Printstock/Getty Images
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Escrever sobre o álcool é difícil. Se a postura for mais flexível, podemos ser acusados de normalizar e banalizar o consumo do mesmo. Se for demasiado proibitiva e assertiva, podemos ser acusados de ser “caretas” e o verdadeiro público-alvo nem sequer nos dá uma oportunidade de sermos ouvidos. De igual modo, é muito difícil deixar de lado a nossa própria experiência pessoal. Se gostarmos de beber uns copos, tendemos sempre a desculpabilizar o consumo para limpar a nossa consciência. Se formos abstémios convictos, iremos sempre falar do álcool com duas pedras na mão. Partindo do pressuposto de que o problema do álcool está em quem o bebe e não em quem não o faz, é importante chegar a essas pessoas. E a forma como o fazemos é crucial. Se algum vegan mais fundamentalista nos tentar convencer a adotar uma alimentação vegetariana escudando-se em documentários da treta ou chamando-nos “assassinos de animais”, é capaz de não gerar a empatia suficiente para nos fazer mudar esse comportamento. Como tal, tratar quem bebe com elevadas doses de paternalismo e proibicionismo é perder essas pessoas à partida.

Como é hábito, comecemos com os factos.

Bebe-se muito em Portugal (como em quase toda a Europa), cada vez mais cedo e a dependência do álcool quase quadruplicou em dez anos. Em Portugal, entre 2010 e 2019, um em cada três condutores mortos em acidentes rodoviários tinha uma taxa de álcool no sangue acima do limite legal permitido (≥ 0,5 g/l). Destes, 73% tinham taxa de alcoolemia considerada crime (≥ 1,2 g/l). O álcool faz parte do grupo 1 (maior risco) de substâncias carcinogénicas juntamente com tabaco, radiação solar e radiação ionizante, ou seja, aquelas em que não há dúvidas nenhumas que “fazem mal”. Há uns meses o adoçante aspartame foi promovido ao 3.º grupo dessa mesma classificação (aquele com evidência muito residual) e foi o alarido que foi.

Por isso, não há dúvida absolutamente nenhuma de que o álcool faz mal, da mesma forma que também não há dúvidas de que quem o consome sabe disso e mesmo assim fá-lo de forma excessiva e deliberada. O álcool no dia seguinte dá dores de cabeça, desidratação e demais sintomas típicos de ressaca. Mas no sábado/domingo/segunda-feira de manhã as pessoas que dizem “nunca mais bebo” estão de novo prontas para abusar dele na sexta-feira seguinte no final do trabalho.

Legislar e regular o prazer é extremamente difícil. Colocar imagens chocantes nos maços de tabaco não diminuiu particularmente o consumo. O advento do PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao VIH) fez com que diminuísse a utilização do preservativo e aumentasse o infecção com outras DST, como sífilis e gonorreia, porque só o VIH “assusta realmente”.

Com o álcool, a única forma de conseguir controlar o seu consumo é através do aumento do preço (porque nada é tão efectivo quanto isso), e da diminuição da oportunidade para o abuso do mesmo, sobretudo em contexto de binge drinking (fiscalizar efectivamente o botellon e a venda de álcool a partir de certas horas em lojas de conveniência). Em 2024, a narrativa do “consumo moderado de álcool tem benefícios para a saúde” pode ser desmontada, porque não há consumo de álcool seguro, quanto menos melhor (o que é diferente de proibir).

O recurso ao álcool (tal como à comida) não é — grande parte das vezes — a causa, mas sim a consequência de outras coisas. Da falta de educação e instrução (em que o único programa dos fins de semana/horário pós-laboral é falar de futebol/assunto do dia que está a passar na CMTV do café), a frustrações profissionais/financeiras/familiares. Um SNS com maior acessibilidade a psicólogos e nutricionistas que conseguissem melhorar a saúde mental das pessoas, sobretudo nas zonas mais carenciadas onde existem dados concretos de consumos excessivos e não há possibilidade financeira de consultar essas especialidades no privado, teria certamente mais impacto do que lançar alertas públicos que entram por um ouvido e saem por outro. Pessoas mais pacificadas e resolvidas bebem menos e sobretudo bebem de forma diferente. De forma recreativa e não patológica.

Sendo algo que tem uma grande componente cultural no nosso país, era também importante não associar o consumo de álcool (sobretudo numa base diária) a um conceito absurdo de masculinidade. Cerveja com favaios ao pequeno-almoço ou café com cheirinho a seguir ao almoço numa base semanal não é “de homem”, é só parvo. Também às muitas pessoas que trabalham na área da restauração/bebidas, e têm como argumento que comer e beber muito “faz parte do trabalho”, pergunte-se-lhes nas refeições seguintes se o fazem porque são obrigadas ou porque realmente até gostam dessas tainadas com clientes que se tornam amigos. E relembre-se-lhes qual é o subsídio de risco que (não) recebem da sua empresa por serem forçadas a ter comportamentos diários que colocam a sua saúde em risco. Um cancro, um acidente rodoviário ou uma fatalidade cardiovascular podem causar à sua família e amigos uma perda irreparável, mas à sua empresa uma substituição relativamente rápida.

Se gosta de beber, sobretudo numa perspectiva mais sensorial e gourmet e sente que a vida só faz sentido se for para usufruir dessas coisas boas, aqui ficam alguns conselhos nada fundamentalistas para gerir melhor esses consumos:

  1. Evite ao máximo beber álcool nas refeições em casa durante a semana. Até porque se for um prato que “merece mesmo um vinho especial”, talvez esse prato mais pesado não seja propriamente a melhor escolha nutricional para se ter num dia banal da semana;
  2. Tente não abrir uma garrafa de vinho em casa para uma refeição a dois ou com filhos, deixando apenas para refeições de família mais alargada. Mesmo que seja a partilhar com outra pessoa e que em teoria seja apenas um copo, a probabilidade de ser mais do que isso com a garrafa já aberta é grande. E se a mesma não for terminada nessa refeição será terminada certamente no dia seguinte. Beba menos e quando o fizer beba com maior qualidade;
  3. Faça uma agenda semanal/mensal de eventos com álcool. É possível programar e atenuar o impacto do mesmo, em semanas em que existem mais convívios, aniversários e nessa fase mais casamentos (e respectivas despedidas de solteiro), comunhões, batizados. Diminuir os programas com álcool a dois quando já vamos estar expostos a uma maior quantidade de álcool em grupo faz todo o sentido;
  4. Evite beber em “rodadas” quando está com amigos e beba ao seu ritmo. Perca o “medo” de dar “parte fraca” por não beber de forma acelerada ou “de penalty“” (ou finja que bebe o shot e atire o seu conteúdo para o chão). Se bebe deliberadamente por procurar essas alterações de consciência e esse efeito desinibidor do álcool, de pouco serve quando no dia seguinte não guarda memórias nenhumas por ter bebido rápido de mais;
  5. Minimize os danos dessa exposição ao álcool com o máximo de treino que conseguir, com uma boa ingestão de água diariamente (urina sempre clara e inodora), sem recurso a solários e com boa protecção quando se expõe ao sol, e uma alimentação “imaculada” durante a semana com muita sopa/fruta/legumes para atenuar os pequenos (ou grandes) incêndios que provoca no seu corpo ao fim de semana;
  6. Identifique situações de risco. Todos temos aquele(s) amigo(s) com o qual “nunca é sempre um copo” e o copo de final da tarde repetidamente se transforma numa saída até altas horas. Às vezes as melhores histórias também acontecem assim, mas é fundamental gerir o número de vezes que isso ocorre. Nem sempre nem nunca e como diz o ditado brasileiro: “Um pouco de salada, um pouco de droga.”

O autor segue o acordo ortográfico

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