Não consigo dormir

Nesta escalada de ódio que levou a agressões a cidadãos imigrantes há muitas responsabilidades.

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Migrants walk towards the Turkey's Pazarkule border crossing with Greece's Kastanies, near Edirne, Turkey March 1, 2020. REUTERS/Huseyin Aldemir TPX IMAGES OF THE DAY - RC2UAF9IR98T HUSEYIN ALDEMIR
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“Não consigo dormir. Tenho um monstro entalado na garganta”. Um monstro disforme e insidioso que, num ápice, me veio bater à porta, no país onde sempre escolhi viver, na minha cidade, no bairro de que tanto gosto.

Há uns dias, uma amiga partilhou um vídeo enviado pela mãe (que não mora no Porto), acompanhado da pergunta: “Preocupante, tens sentido esta insegurança?”. O vídeo era uma reportagem da CMTV, onde se entrevistava moradores e comerciantes, dando conta de uma “onda de violência” no Campo 24 de Agosto, alegadamente perpetrada por grupos organizados de “argelinos e marroquinos”. De imediato, estremeci: “Isto vai dar asneira”. E assim foi, muito mais rápido do que pensava.

Esse mesmo vídeo foi partilhado pelo partido de que todos falam, com a legenda “Só o Chega pode pôr fim a isto”. 10179 likes, 775 comentários. Um rol de insultos e de apelos à deportação: “Um contentor em Leixões e metê-los todos lá dentro”; “Todos daqui para fora, mas antes disso meterem-nos numa sala escura com os olhos vendados e partirem-lhes os dentes”; “Está na hora de limparmos as ruas, que seja uma limpeza bem a fundo”; “Como é? Vamos marcar isso? Já tenho alguns para ir lá. É só mandar MP”. Milícias populares a organizarem-se à vista de todos. Sem qualquer interferência, numa publicação oficial nas redes de um partido com assento parlamentar.

Nesta escalada de ódio, que levou a agressões a cidadãos imigrantes, há muitas responsabilidades. Há responsabilidade do Governo cessante que deixou passar, por várias vezes, comentários racistas e xenófobos por parte de um líder ainda em funções. Há responsabilidade de um ex-primeiro-ministro que, sem qualquer pudor e fundamento científico, juntou na equação imigração e insegurança. Há responsabilidade da AD que escolhe como candidato às europeias um sujeito que termina a sua primeira intervenção pública com uma saudação nazi. Há responsabilidades de (alguma) comunicação social que sistematicamente contraria os avisos da CICDR para não se utilizarem referências a nacionalidade ou etnia, quando estejam em causa actos ilícitos. Há responsabilidade da AIMA que, aos nossos olhos, parece uma entidade inoperante ou, no mínimo, assarapantada. Há responsabilidade de Rui Moreira que autorizou uma manifestação do grupo de extrema-direita 1143, contribuindo para a normalização e legitimação de ideais neonazis. Há responsabilidades da esquerda que não tem conseguido dialogar o suficiente com a população, acolher as suas preocupações e transformá-las em políticas públicas concretas.

Perante a gravidade do que sucedeu, a responsabilidade passa a ser também da Câmara Municipal do Porto, da Junta de Freguesia do Bonfim, das universidades, escolas e colectividades da cidade, enfim, de todas e todos nós. Se o Governo central e as suas estruturas não estão a dar resposta, temos de ser nós a organizarmo-nos para garantir a inclusão social e económica destas comunidades. E isso passa por oportunidades de emprego e direito à habitação digna, por cursos de língua portuguesa gratuitos ou por actividades culturais (concertos, exposições ou eventos gastronómicos) que promovam a troca e a proximidade entre os diversos grupos sociais. Passa também por recusarmos o mantra falacioso de que “não há racismo em Portugal” e sermos absolutamente intransigentes com quaisquer laivos de xenofobia e racismo que aconteçam à nossa volta. Sabemos bem que o problema é que o que era sussurrado entre paredes passou a ser gritado ao megafone e (já) não podemos deixar passar.

A raiz deste monstro é a desumanização que diminui e hierarquiza o outro. A mesma desumanização que, no início da invasão russa, considerou que refugiados/as ucranianos eram de outra categoria e tinham prioridade face a sírios ou nigerianos. Ou a que permite que um genocídio nos entre pelos ecrãs adentro e só os reféns israelitas tenham direito a um rosto e a um nome. “Tenho um monstro atravessado entre as minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ele que fosse embora” [citação adaptada do poema A noite de Eduardo Galeano, retirado d'O livro dos Abraços, 1991].

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