O Coração Ainda Bate. No campo
A utopia foi derrubada pela distopia, diz Inês Meneses.
O meu pai, aos quase 88 anos, diz muitas vezes: “estou em baixo de forma”. Gosto desta expressão, porque eu, aos 52, estou muitas vezes próxima desse lugar. Não pode ser o mesmo. O meu pai perdeu a mulher, a sua referência de toda a vida (mesmo que toda a vida tenha sido injusto com ela) mas, agora, falta-lhe um braço, um movimento que o ajude a situar-se, uma dança que o leve ao centro de tudo. Eu estou só angustiada com o excesso. Era importante que todos disséssemos: “estamos nauseados com o excesso: vamos parar”.
Há muitos dias que sinto essa náusea, esse aborrecimento, essa dor adormecida. Nem sei de onde vem - temo que venha de tudo o que li, assimilei, intuí, temi, daquilo que perspectivei ser o futuro. Antes tínhamos a utopia, agora fomos derrubados pela distopia.
Estou em baixo de forma, disfarçando todos os dias com uma pequena distracção, mas isso revela-se insuficiente.
O meu pai, porque se permite até saltar nos anos, não sabendo ao certo quantos tem, pode passar uma tarde a alimentar-se de memórias. Eu, consciente dos dias todos, vivo do presente. E o presente revela-se perigoso. Eu a pensar que o perigo estava no futuro…
O que fazemos quando a esperança nos falta ao pequeno-almoço? Ao acordar? Depois de uma notícia que parece quase boa? Quando regressamos a casa, o único lugar aonde desejamos chegar? Que falta de esperança é esta que se come em papas de aveia no início de cada dia? Como contrariamos isto?
Há muito tempo que venho a defender que temos de redesenhar uma sociedade que volta às origens e se estabelece de novo no campo. Poderemos formar de base um pensamento quase livre (estamos condenados, depois de tanta informação) e teremos de nos libertar de boa parte do que temos para seguir em frente.
Voltemos à frase chave desta crónica, escrita no Dia da Mãe: “estou em baixo de forma”. Faltam-me alegrias pequenas, coisas de nada, que a comunicação social está longe de querer fazer germinar. Tudo o que é de pequena dimensão está, hoje em dia, condenado: os escritores de pequena dimensão, os semi notáveis, os atores quase famosos, os pensadores respeitados mas pouco conhecidos. Estamos na época do exagero, que não aceita sequer um desabafo honesto como estar em baixo de forma. Isso não vende, não é apelativo. Nenhum boião de creme quer eliminar rugas vindas desse sofrimento, mesmo que todos precisemos desse antídoto.
Se me perguntassem onde queria estar agora, facilmente responderia: no campo. Longe das angústias colectivas. É egoísta? Talvez. Mas ninguém se incomoda com as nossas. As minhas. As daqueles que nem sequer ao boião de creme chegam.
Há uns anos, quando impactei com o episódio de Black Mirror em que tudo se resumia a um punhado (grande) de likes para ter acesso a uma viagem, um patamar seguinte, uma supremacia que se contava em polegares, não me ri. Percebi que o futuro já estava demasiado próximo. Eu sou do tempo em que Blade Runner nos parecia um cenário distante e futurista, quando hoje é uma ficção ultrapassada pela nossa própria realidade. Talvez os Replicants ainda não sirvam de medida para nos distinguir do que fomos e do que corremos o risco de ser, mas mais cedo ou mais tarde isso será inevitável. E se as memórias puderem ser também reconstruídas, então o que nos sobra? Como nos distanciaremos do logro, quando o real é tão difícil de somar?
Estou em baixo de forma. Esta sociedade não estará muito melhor do que eu. Apenas tenta dissimular o mal-estar diário. Sinto que estamos no momento em que ainda o podemos dizer. Depois disso estaremos na dimensão de Black Mirror. Alguns, talvez, já no campo.
O coração ainda bate.