Humberto Adami: “Portugal tem de pedir desculpas a todos os cidadãos negros”

Vice-presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra diz que repercussões da escravidão se sentem até hoje no Brasil: “Chegará a hora em que Portugal terá que partir para esse acerto de contas.”

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Interferência sobre imagem de Marc Ferrez Fernando Frazão/Agência Brasil
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Humberto Adami é um advogado com longa experiência na área dos direitos das relações étnico-raciais no Brasil, tendo interposto acções junto do Ministério Público Federal e dos estados sobre desigualdade racial nas Forças Armadas. Actualmente é, na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), presidente da Comissão da Igualdade Racial do Instituto dos Advogados Brasileiros (CIR IAB), vice-presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra e presidente da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra no Rio de Janeiro. Em Outubro, foi Adami que recebeu da vereadora Luciana Boiteux, em nome da OAB, a homenagem da Câmara Municipal do Rio de Janeiro às organizações e movimentos que lutam pela memória, verdade e justiça no estado. Na altura, considerou que a questão racial e as reparações pela escravatura são dos temas “mais importantes do Brasil e que não podem ser esquecidas”.

O que pensa das declarações do Presidente português de que Portugal tem a "obrigação" de "liderar" o processo de reparação aos países que foram colonizados​?
Sobre a reparação da escravidão negra, eu acho que ele está certo. O que ele propõe é um caminho de acerto, um caminho de pacificação, um caminho de resgate do passado, um caminho, inclusive, de acordo com os tratados internacionais que mencionam a escravidão negra como um crime da história. Ao apontar que Portugal assuma a sua responsabilidade como país que conduziu a escravidão para pessoas pretas e pardas, ele dá uma solução para se chegar a uma posição de restauração e de equilíbrio da verdade em si. Isso não pode ficar, como bem apontou a ministra da Igualdade Racial do Brasil, Anielle Franco, apenas na palavra, apenas no desejo. E, principalmente, tem que haver também o pedido de perdão, pedido de desculpas.

Acha que Portugal tem que pedir formalmente desculpas ao Brasil por tudo o que fez?
Não só ao Brasil, mas a todos os cidadãos negros, que são descendentes daqueles que foram sequestrados em África. E, quando aqui chegavam [ao Brasil], tinham uma vida de sub-humano, sem direito até mesmo à condição de ser humano.

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Humberto Adami DR

Mencionou que era bom que não ficasse só nas palavras do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, mas a verdade é que o Governo português já veio dizer que não tem nenhum plano de reparações...
O Governo português pode começar com um pedido formal de desculpas. Isso daria a todos os cidadãos negros do mundo uma sensação de justiça. Que as palavras sejam apenas palavras, mas isso também pode encaminhar para a cura. O Governo português, mais cedo ou mais tarde, vai ter que se defrontar com esse passado escravocrata. Houve na escravidão também lucro com esse tráfico de pessoas e isso tem consequências de imprescritibilidade. O relógio está parado aí para esse acerto de contas. Vai chegar, mais cedo ou mais tarde. E a outros países também. O debate da reparação da escravidão é um debate internacional que não envolve só o Brasil e Portugal, envolve muitos outros. A Inglaterra com os livros de contas das companhias das Índias que traficavam escravos pelo mundo inteiro. A França também tem a sua parte nesse assunto.

Há quem diga que o importante na história não são as reparações, mas sim ensiná-la. Ou seja, o importante é conhecimento, que as pessoas saibam o que aconteceu...
A verdade é um bem supremo. As reparações caminham na direcção da criação de um fundo de indemnização financeira, mas também caminham na direcção de outras que não são materiais. Aqui no Brasil, a escravidão negra produziu e produz até hoje consequências devastadoras para uma parte da população. As repercussões sentem-se até hoje. No Brasil é como se você tivesse dois tipos de cidadãos: os cidadãos com direitos por causa da cor da sua pele branca e os cidadãos sem direitos por causa da sua pele negra. Mesmo os direitos constitucionais para essa segunda categoria parece que não existem.

E isso é uma herança directa da colonização portuguesa?
É a herança directa da escravidão e, obviamente, Portugal foi responsável por essa escravidão, por sequestrar pessoas nas costas de África para as trazer para o Brasil para essa vida de trabalhos forçados, sem direito sequer à sua própria vida, sem direito a ser considerado um ser humano. Chegará a hora em que Portugal terá que partir para esse acerto de contas. Isso não quer dizer que o Brasil também não precise de fazer esse exercício, de tomar essa atitude perante o racismo que existe até aos dias de hoje e que discrimina a população negra e mestiça. Acontece diariamente, em todos os lugares do Brasil e em outros lugares do mundo. Esta é uma luta internacional, uma luta que atinge uma grande parcela da população mundial. Em Portugal, eu tenho visto daqui, que também essa herança escravocrata produz não só a dor do passado, mas a dor do presente.

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