Reparações históricas: que futuro?

Aquilo que, de forma mais contundente, poderá legitimar reparações não são as injustiças cometidas num passado distante, mas a sua perpetuação nos nossos dias.

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No final de 2023, o primeiro-ministro britânico Rishi Sunak gerou uma crise diplomática ao cancelar uma reunião com o seu homólogo grego Kyriakos Mitsotakis. Na origem desta crise esteve a indisponibilidade de Sunak para debater a devolução de um conjunto de estátuas do Parténon, conhecidas como “mármores de Elgin”, atualmente expostas no Museu Britânico. As obras de arte foram levadas para o Reino Unido em 1806 por Lord Elgin durante o período da ocupação otomana.

As exigências gregas despoletaram um intenso debate no Reino Unido que se estendeu a outras obras de arte que aí se encontram alojadas. Recentemente, a atenção da imprensa britânica virou-se para um conjunto de artefactos sagrados extraídos da Etiópia em 1868 por soldados ingleses após a batalha de Magdala.

Estes episódios vieram juntar-se a um vasto leque de pedidos de reparações relativas a injustiças cometidas no passado, não só no âmbito da devolução de património cultural, como também da conivência com a escravatura e da ocupação de territórios indígenas.

As reações dos governos mundiais a estas exigências têm sido bastante diversas, assumindo uma maior visibilidade política nos últimos anos. Por exemplo, no final de 2022, o governo holandês anunciou a criação de um fundo de 200 milhões de euros para iniciativas relacionadas com o trabalho escravo nas colónias holandesas. No mesmo sentido, após duas décadas de fortes protestos e duras batalhas legais, as autoridades canadianas acederam, em Abril de 2023, a indemnizar as comunidades indígenas locais em 600 milhões de dólares. Já no que toca aos pedidos de restituição de património, alguns deles foram bem-sucedidos, como atestam as devoluções de outros fragmentos do Parténon por parte do Vaticano e da Itália.

Mas a maior parte destas exigências continua sem produzir resultados. Por exemplo, as autoridades norte-americanas nunca abriram a porta a compensações relacionadas com a escravatura. Por sua vez, várias comunidades indígenas continuam a exigir reparações sem grande sucesso, como sucede no Brasil. Da mesma maneira, os casos em que ocorreu restituição de património cultural constituem uma minoria face à extensão dos tesouros expostos nos museus europeus que foram extraídos durante o período colonial.

O que têm em comum, ou de diferente, estes casos? Será que existe um dever da geração atual em reparar os erros das anteriores? E terão os descendentes daqueles que sofreram injustiças algum direito a ser compensados por factos que não lhes causaram diretamente prejuízos?

Antes de mais, vale a pena observar algumas dificuldades que estas reivindicações enfrentam.

Desde logo, coloca-se a questão do nexo de causalidade entre uma injustiça passada e a responsabilidade da geração atual. Assumamos, por exemplo, que todos os descendentes de indivíduos livres estariam de acordo que a opressão exercida pelos seus antepassados sob os antigos escravos foi hedionda. Mas o que vincularia, hoje, os primeiros a compensar os segundos? Como pode alguém ser chamado a responder pelos atos do seu tetravô?

Na outra face da mesma moeda, levanta-se um problema de indeterminação dos eventuais beneficiários das reparações na geração atual. Quem, no presente, deverá ser compensado pelos danos sofridos muitas gerações atrás? Que direito terá alguém a ser ressarcido, quando não é a vítima da ofensa?

Por outro lado, põe-se a questão do horizonte temporal a que se deverão aplicar as reparações. Até onde na história é recomendável corrigir injustiças? Será que cumpre compensar as vítimas inocentes das guerras napoleónicas? Dos flagelos das Cruzadas medievais? Do longo imperialismo de Roma?

Estas questões deixam patente a dificuldade em articular, de forma consistente, muitas das exigências de reparações que vão para além de um salutar reconhecimento das injustiças cometidas no passado.

Mas significa isto que nada deve ser feito?

Certamente que não.

Uma maneira de contornar estes dilemas passa por mudar de perspetiva. A ideia é que não nos devemos focar nos efeitos destas injustiças no passado, mas, sim, no presente. Por outras palavras, aquilo que, de forma mais contundente, poderá legitimar reparações não são as injustiças cometidas num passado distante, mas a sua perpetuação nos nossos dias.

Veja-se o caso da escravatura. Segundo este prisma, o que há a corrigir não é a terrível opressão passada, mas os resquícios que ela terá deixado na sociedade atual, como seja, no caso dos Estados Unidos, a discriminação no acesso à justiça com base na cor da pele. Como tem sido apontado por diversas organizações de defesa dos direitos humanos, não é por acaso que o rácio do contingente prisional americano é de 6 negros por cada branco, segundo os dados do Serviço de Estatística do Departamento de Justiça. Trata-se, sem dúvida, de uma repercussão das diferenças de tratamento herdadas do período esclavagista.

Por sua vez, no que se refere à perda de território indígena, o que há a reparar não é a expropriação infligida no passado, que, aliás, tantos grupos têm vindo a sofrer ao longo da história, mas o facto de algumas comunidades atuais se verem confinadas a territórios minúsculos, seriamente ameaçados pela desflorestação.

Da mesma maneira, não é o roubo centenário de artefactos que é passível de compensação, mas a exibição hodierna, em larga escala, do património de outros povos, sem o seu consentimento, que faz com que qualquer cidadão da Grécia ou do Benim tenha de se deslocar a Londres ou a Berlim para visitar os tesouros da sua civilização.

Por conseguinte, assegurar a igualdade de tratamento por parte do sistema de justiça, criar reservas indígenas seguras onde elas não existam e devolver património a países que estejam em condições de preservá-lo seriam maneiras de promover a justiça no mundo atual tendo em conta os erros da história, mas sem a pretensão de rescrevê-la.

Esta abordagem dissipa, pelo menos em parte, as dificuldades que foram apontadas.

Senão, vejamos. A nossa eventual responsabilidade no presente deixa de emanar de um ato dos nossos antepassados, do qual estamos desligados, para se centrar nos benefícios que ela hoje nos possa trazer. É ao perpetuar uma injustiça que dela nos tornamos corresponsáveis. Paralelamente, fica claro que os destinatários das reparações delas são merecedores, uma vez que são eles próprios vítimas de injustiças. Acresce que a questão de quão atrás no tempo deveremos olhar passa a ser respondida por referência ao presente: deveremos compensar as injustiças passadas que continuem a manifestar-se, de forma clara e tangível, no presente.

É certo que esta mudança de perspetiva não resolve todas as dificuldades inerentes aos pedidos de reparações. Mas creio que proporciona uma solução pragmática atrativa, pelo menos para todos aqueles que considerem que as injustiças do presente devem ser corrigidas, qualquer que seja a sua origem.

Tal poderá ajudar a dar um futuro mais promissor às exigências de reparações históricas.

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