Estacionamento, um P dos nossos pecados

Parafraseando Cristo, em Portugal é mais fácil fazer passar um automóvel pelo buraco da agulha do que deixar chegar um pobre peão à porta do reino dos céus.

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Numa das cidades que frequento, em cima do passeio em frente ao escadório de uma igreja, uma placa com um bem conhecido P indica um lugar de estacionamento “reservado” para o “pároco”. Nunca lá vi viatura estacionada, mas a imaginar que o espaço pudesse mesmo estar ocupado, por exemplo, em hora de missa, os fiéis que ali chegassem do casario próximo, e que já passam por um troço de rua com um passeio miseravelmente estreito, deparar-se-iam com este obstáculo. Mas se o lugar é para o padre…

Parafraseando Cristo, em Portugal é mais fácil fazer passar um automóvel pelo buraco da agulha do que deixar chegar um pobre peão à porta do reino dos céus. Em boa parte das nossas aldeias, vilas e cidades, a rua é tratada como um espaço sagrado para os automóveis, tornando-se via-sacra para os restantes utilizadores, que tantas vezes carregam a cruz de ter de seguir no meio do trânsito, arriscando-se a uma viagem directa ao paraíso.

Não sei o que pensa Deus disto, mas o problema é que, do ponto de vista da lei dos Homens, pode nem ser pecado. O próprio Regulamento de Sinalização de Trânsito, preocupado com as pessoas com necessidades especiais  — espere lá, essas não são outras?  — , exemplifica os casos em que podemos mandar as regras gerais às malvas e ocupar o espaço de quem anda a pé, garantindo-lhes, a estes, uns mínimos. E, se é possível, é claro que haverá sempre quem o faça.

Salve-se quem puder

Belém, em Lisboa, foi notícia há algumas semanas por mais uma decisão que, fazendo uso desta prerrogativa, atenta contra um sem-fim de estratégias e políticas públicas de defesa da acessibilidade plena, da mobilidade activa e que, no limite, prejudica o direito dos mais vulneráveis ao espaço público. E a capital ainda é, a este nível, um retrato fidedigno do inferno em que a dependência do automóvel transformou uma parte significativa das nossas cidades.

Em transe motorizado há quase um século, evangelizados por uma linguagem carrocêntrica que confunde trânsito com automóveis e ignora as imobilidades que o seu excesso provoca, é normal que acreditemos estar a fazer o bem quando instalamos um P para o sr. padre estacionar no passeio ou quando “escutamos” os nossos vizinhos e lhes arranjamos umas centenas de metros de calçada de peões para parquear as suas viaturas sem correrem o risco de apanhar uma multa.

Se o pecado não está em fazer uso das possibilidade previstas na lei — embora isso possa ser, no limite, imoral  —, o que dizer da forma como, tomada uma decisão que aprofunda riscos e desigualdades, nos desresponsabilizamos de fazer cumprir os direitos dos mais frágeis nesta disputa por um bem escasso, o espaço público? Num dos vários países onde é permitido o estacionamento em passeios, um amigo ia sendo multado por um polícia armado de fita métrica, que o apanhou a incumprir os mínimos para peões. Em Portugal, desconfio de que nem com um milagre de multiplicação de polícias chegaremos lá.

A questão é que me parece que não queremos. Não querem muitos autarcas, que acreditam piamente que os munícipes votam com o carro; não querem os cidadãos mais ou menos dependentes do seu automóvel, que se arrogam o direito de o parar onde lhes apetecer, não queremos nós, enquanto sociedade, porque toleramos isto, prejudicando todos, e principalmente aqueles que não se conseguem fazer ouvir, na vozearia deste trânsito de preconceitos que nos atropela um direito básico e universal: o de seguir a pé, sem que a rua se nos assemelhe a um calvário. O problema de Belém é que está longe de ser uma excepção. Para mal dos nossos pecados.

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