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Para a NASA, o céu nunca é o limite — excepto quando os astronautas são LGBTQI+
Premiado na última edição do World Press Photo, The Gay Space Agency chama a atenção para o facto de nunca um astronauta abertamente LGBTQI+ ter estado no espaço, pela NASA. A História pode explicar.
“Os homossexuais não devem manusear materiais ultra-secretos”, declarou publicamente, no início dos anos 1950, o senador republicano Joseph McCarthy. “O pervertido é uma presa fácil para chantagistas”, tentava justificar. Viviam-se tempos muito particulares, nos EUA, naquela década. A Guerra Fria, que surgia no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, gerava um movimento institucional de perseguição aos alegados militantes e simpatizantes do comunismo. Esse acosso conduziu, ao longo das décadas seguintes, ao saneamento e criminalização de milhares de cidadãos do país.
Os comunistas não foram, à época, as únicas vítimas do macarthismo. As mesmas ferramentas de repressão utilizadas para fazer frente à “ameaça vermelha” viriam a ser usadas sobre outra franja da população. Sustentado na formalização da posição da Associação Americana de Psicologia, que passou, a partir de 1952, a classificar de “doença mental” a homossexualidade, o presidente Eisenhower assinava, no ano seguinte, uma lei que permitia às autoridades norte-americanas “investigar, interrogar e afastar de forma sistemática homens gays e lésbicas do governo federal”. Neste período, conhecido nos EUA por Lavander Scare, foram afastados dos cargos públicos que ocupavam milhares de pessoas “suspeitas de homossexualidade” até 1975, altura em que a lei de Eisenhower é declarada inconstitucional.
Mantiveram regime de excepção as organizações federais NSA e FBI, que continuaram a discriminar oficialmente com base na orientação sexual até 1998, ano em que Bill Clinton assina uma ordem executiva que conduz à extinção desse factor de exclusão no processo de recrutamento.
“A NASA nunca enviou para o espaço um astronauta que fosse abertamente queer”, observa a fotógrafa Mackenzie Calle, autora do projecto vencedor do prémio da categoria Open do World Press Photo de 2024, The Gay Space Agency. Em entrevista ao P3, a partir de Brooklyn, Nova Iorque, a norte-americana reforça que embora não exista, no presente, nenhum critério explícito que force à exclusão dos membros à comunidade LGBTQI+ das equipas de astronautas da NASA, a sua ausência pode suscitar algumas dúvidas.
A ideia para o projecto surgiu quando, em 2021, Mackenzie Calle tomou consciência de que a astronauta Sally Ride, a primeira mulher norte-americana a ir ao espaço (em 1983), era lésbica. “Ela revelou a sua homossexualidade no seu obituário, em 2012. Viveu com a companheira durante 25 anos, mas só o revelou publicamente após a morte.” Esse facto marcou-a. “Enquanto pessoa queer que sempre se interessou por astronomia, e que nutria um respeito especial por Ride, comecei a investigar sobre este tema e descobri que os astronautas da NASA tinham, no passado, de se submeter a testes de heterossexualidade durante o recrutamento.”
Um dos testes “era o de Rorschach”, explica. “Tinham de olhar para formas abstractas e, supostamente, associar algumas delas à anatomia feminina. O outro era The Edwards Personal Preference Schedule (EPPS). Nos 15 critérios de personalidade que eram testados, um deles dizia respeito à orientação sexual.” Os testes foram aplicados aos astronautas que integraram as missões Mercury, Gemini e Apollo, que decorreram em anos em que era ilegal recrutar pessoas gays ou lésbicas.”
Abriu-se, para Mackenzie, uma caixa de Pandora. “A partir daí, comecei a investigar mais a fundo.” Mergulhou nos arquivos fotográficos da NASA, que estão disponíveis para consulta pública, e começou por manipular algumas das imagens antigas. “Comecei a trabalhar sobre essas fotos e a manipulá-las e a acrescentar elementos de forma a contar uma história”, explica. “Queria questionar a identidade dos astronautas, colocar questões sobre quem eles seriam.”
A direcção do projecto mudou quando tomou conhecimento da existência do projecto Out Astronaut, que tem como missão aumentar a visibilidade e representação de pessoas da comunidade LGBTQI+ nas áreas da ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Em 2021, o grande vencedor foi Brian Murphy, um estudante de Astronomia gay e não binário. “Contactei a organização e, felizmente, aceitaram receber-me e fotografar o Brian enquanto fazia treinos de gravidade. Essas foram as primeiras fotografias que fiz, propriamente, para o projecto.”
Desta forma, o projecto está dividido em duas partes: a primeira, que toca a história espacial norte-americana – em que explora os arquivos da NASA, as reportagens publicadas em revistas e jornais do século XX sobre as vidas os astronautas que reflectem, de forma gritante, a heteronormatividade – e a segunda, em que Mackenzie Calle tenta dar forma, através das imagens que cria ou manipula, a uma agência espacial gay imaginária, ficcional.
“O que realmente me inspirou foi imaginar uma agência espacial queer, poder sugerir a presença de pessoas queer no espaço, esperando que haja alguma mudança no futuro.” De acordo com a sinopse do projecto, ainda prevalece, na NASA, uma política de silêncio e exclusão no que diz respeito à comunidade LGBTQI+. “Um estudo de 2022 revelou que os astronautas da NASA que pertencem à comunidade têm a percepção de que serem abertos relativamente à sua identidade poderá colocar em risco as suas chances de serem seleccionados para missões espaciais”.
A agência espacial norte-americana tem, desde 2016, um programa destinado aos membros desta comunidade, a que chamou LGBTQ Special Emphasis Program, que tem como objectivo “abraçar outra comunidade dentro da nossa força de trabalho, sem qualquer obrigação legal a fazê-lo”, lê-se no site oficial. “Acreditamos que estamos a criar um ambiente inclusivo que é condutivo ao reconhecimento, desenvolvimento, compreensão e utilização das valências, aptidões e conhecimentos de cada empregado, de forma a alcançar a máxima produtividade.”
O projecto, que foi financiado através de uma bolsa da Magnum Foundation, pretende ligar o passado ao presente da NASA, tentando promover a consciencialização para o tema e a mudança. “Acho que a história LGBTQI+ está pouco estudada e que se deveria dedicar-lhe muito mais atenção”, conclui. “A história queer tem sido suprimida, silenciada, apagada. Um dos meus objectivos com o projecto é criar algo de natureza visual que possa interessar às pessoas, de forma a fomentar o seu interesse pela história da comunidade LGBTQI+.” Apesar da exposição mundial que o prémio World Press Photo conferiu ao projecto, a NASA não se pronunciou sobre o mesmo.