Sobre a noite passada: já temos a melhor série do ano com Shogun?
Limpas as “teias de aranha culturais” da história original, o Japão feudal e as suas mulheres brilham numa série FX/Disney+ que chegou ao fim na terça-feira e deixou marca.
Este artigo contém spoilers para o final da série Shōgun.
As atenções estão dispersas, já se sabe, mas há alturas em que se percebe que muita gente está a ver O Problema dos 3 Corpos ou One Day. Como houve momentos em que Succession dominava parte das conversas ou, no fim de uma época, que A Guerra dos Tronos era inescapável. Agora, é uma série falada sobretudo em japonês sobre uma luta de poder no século XVII em que uma actriz, Anna Sawai, se tornou o foco das atenções e o “complexo do salvador branco” foi eliminado com uma catana. Shōgun chegou ao fim terça-feira na Disney+ e é forte candidata a melhor série do ano.
“Enviei uma mulher para fazer o que um exército não conseguiria”, diz nos últimos momentos de um belíssimo episódio final o senhor feudal Toranaga, interpretado por um não menos belíssimo protagonista e produtor executivo Hiroyuki Sanada. Essa mulher-arma, silenciosa e honrada como um kamikaze de quimono, é Mariko Akechi, papel que deu a Anna Sawai uma visibilidade que supera a conseguida nas séries Pachinko ou Monarch: Legacy of Monsters (Apple TV+).
Shōgun é, antes de mais, a segunda adaptação norte-americana do romance homónimo de 1975 de James Clavell, passado no período Sengoku da História do Japão, e a história do daimyo Toranaga, um dos líderes em contenda após a morte do anterior líder supremo, Taiko, e antes da maioridade do seu único herdeiro. Um grupo de outros senhores feudais conspira para tirar Toranaga do tabuleiro, usando até a concubina e mãe do herdeiro, Ochiba (Fumi Nikado), para urdir a teia onde o capturar.
Mas Shōgun, fiel ao livro depois de limpas as “teias de aranha culturais” dos anos em que as ideias sobre o colonialismo ocidental eram bem diferentes, como disse com graça o co-criador da série Justin Marks à revista Hollywood Reporter, rapidamente pôs na linha da frente a extraordinária Mariko. Que, revelando a sua história passada, não só ganhou densidade de personagem, protagonismo e também explicou aos espectadores ocidentais os códigos de honra, traduzindo-lhes os ritos cerimoniais do Japão, tornando tudo explosivo quando encontrou a morte sacrificial no nono episódio.
Aquele número de episódio que, como se tornou quase convenção desde que o público se viciou em A Guerra dos Tronos, é o das grandes batalhas, confrontos e choques. Portanto, há uma semana que os não-leitores esperavam ver o rescaldo da morte da herdeira de uma longa linhagem de samurai (mas caída em desgraça por um acto benévolo ainda que inaceitável do pai) e talvez a invasão de Osaka por Toranaga e suas forças. Ah, e que papel que afinal iria desempenhar o inglês John Blackthorne (Cosmo Jarvis), que no primeiro episódio abriu a porta ao público para a série, um refrescante sucessor de Richard Chamberlain na série de 1980, mas sem ser a personagem a partir de quem se vê o Japão. “Ele faz-me rir”, resume Toranaga.
Felizmente, o décimo episódio não foi como o finale de uma ópera, embora tenha tido grandiloquência. Depois de semanas a tentar identificar correctamente os nomes de cada samurai, senhor, camponês, cortesã ou a decifrar quem eram os actores portugueses na série (a saber: Paulino Nunes, Louis Ferreira, Joaquim de Almeida, Paul Moniz de Sá) numa história em que Portugal é a potência estrangeira que, através do catolicismo, tenta esconder o Japão e suas riquezas do resto dos predadores europeus, tudo foi O Sonho de um Sonho. Título do capítulo e súmula das ideias de uma série que deixou marcas na cultura popular.
Seppuku. Shinobi. Céu Carmesim. Shōgun – um líder militar totalitarista. Memes com Mariko, que domina o inglês como japonesa que, na vida real, passou os primeiros dez anos de vida na Nova Zelândia, a traduzir as longas e profanas tiradas de Blackthorne com economia de palavras e mais cautela. “A guerra é inevitável”, vocifera o senhor Ishido, o mais próximo de um vilão que a série tem quando o próprio “herói”, Toranaga, cria uma intriga tão traiçoeira que leva à morte incauta de alguns dos seus mais fiéis vassalos. Nomeadamente Mariko, só para relembrar a poeta que só queria morrer e que também deixou um lapidar “Vivemos e morremos”.
Num penhasco frente ao mar, com o nevoeiro sempre a rondar, a fotografia e o guarda-roupa, bem como a direcção de arte e a escrita e a realização juntaram-se num momento em que as peças do puzzle de uma conspiração finalmente se alinham sentido após nove semanas (os primeiros dois episódios estrearam-se no mesmo dia) de prestidigitação no enredo, de espionagem e de guerrilha. Como num jardim zen, a ordem reinou na cena em que Toranaga honra o papel de Mariko, a mulher-exército e a aliança feminina que lhe dará o sonho.
O episódio foi não o fogo-de-artifício da guerra nem a promessa da vitória, mas sim um plano que contraria a inevitabilidade bélica. “Um país sem guerras, um período de longa paz”, perspectiva Toranaga antes de decapitar o seu mais recente traidor, Yabushige. Porém, ele quer ser um shōgun. Que é como quem diz, um ditador com poderio militar sob a capa de um fantástico Hiroyuki Sanada, que deseja a paz e a estabilidade. É um tempo interessante, este dos populismos do século XXI visto à contraluz dos êxitos do ecrã como Duna ou Shōgun. Um messias não é bem a solução, mas que faz bonito, faz.
A ambiguidade é um sítio completamente diferente daquele onde poderia ter acabado a série (será mesmo o final desta minissérie, que vai até ao limite do livro? Lá iremos), e por isso é um justíssimo final. Fomos só confirmar: “Shōgun acaba não com estrondo, mas com um sussurro – e um lugar na história da televisão”, postula o respeitado crítico de televisão Alan Sepinwall na Rolling Stone. Certo.
Elogios abundam, também no Japão, o que é deveras importante, ao casal de autores Justin Marks e Rachel Kondo, que há cinco anos trabalham neste projecto, e a Hiroyuki Sanada por ter sido o fio-de-prumo do realismo histórico e cultural da série. Tantos que, apesar de o material base se ter esgotado, existirem outras obras de James Clavell com pontos de contacto com Shōgun que podem ser escavadas. O futuro ao canal FX pertence, que há dez anos andou a fazer esta minissérie e que agora a viu recolher louros mundo fora com números recorde para a Disney+. Nada está posto de parte, dizem Marks e Kondo. Uma coisa já fizeram, que foi juntar-se a The Sympathizer e a uma mão-cheia de outras séries recentes de produção anglo-saxónica cuja única língua não é o inglês.
“Mas que fogueira que ela fez”, suspira Toranaga sobre um poema de Mariko e as consequências dos seus actos. De facto.
P.S.: A História do Japão serve de base ao livro e ao possível epílogo. Em Shōgun, Toranaga quer fazer de Edo o seu centro político e militar. O período Edo japonês, que se enceta no século XVII, é também o período Tokugawa, sob o shōgun Tokugawa. Qualquer semelhança com a realidade na história de Clavell não é mera coincidência, apesar de alguns nomes terem sido alterados, como se costuma ler nas adaptações ficcionadas de casos reais.