À política o que é da política, à indústria (alimentar) o que é da indústria

Sabendo do impacto que os alimentos ultraprocessados podem ter nas pessoas mais vulneráveis e dos elevados números de excesso de peso, cabe à política fazer o seu papel na regulação do mercado.

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Nas batatas fritas há a combinação de amido/açúcar, gordura e sal Getty Images
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Quem convive diariamente com o mundo da perda de peso está muito habituado a duas narrativas clássicas: “a malvada indústria alimentar que nos quer engordar” e “a pressão da sociedade para que todos sejam magros e atléticos”. Neste texto apenas vamos abordar a primeira, não na tentativa de (des)culpabilizar os vários agentes, mas de apelar à responsabilização de todos: nas palavras e nos actos.

Comecemos com os factos. A obesidade é uma doença, não é uma escolha. A prevalência de adicção a alimentos ultratransformados (14%) é semelhante à do álcool e tabaco e é mais do dobro em indivíduos com obesidade (32%). Falamos de uma adicção caracterizada pela diminuição do controlo na ingestão destes alimentos, “cravings”, sintomas de abstinência e uso continuado apesar das consequências negativas. A junção de açúcar com gordura (e uma pitada de sal) tem um efeito sinérgico e aditivo nos sistemas de recompensa cerebral, daí não ser muito provável que fique “viciado” em alimentos “puros” como açúcar de mesa (100% açúcar) ou azeite (100% gordura), mas em pão com manteiga, chocolates, bolos, bolachas, pipocas e batatas fritas (onde já vemos a combinação amido/açúcar + gordura + sal). A indústria alimentar sabe disso e logicamente tenta colocar no mercado os alimentos da forma mais atractiva possível, com recurso a aditivos alimentares e painéis sensoriais para garantir que atingem o sabor, cor e textura perfeitos.

E neste momento surge a questão: estão ou não nesse direito? Não é legítimo que qualquer empresa queira ter o máximo de sucesso e vendas para os seus produtos? Alguma vez foi obrigado por essas marcas a consumir esses produtos? A resposta a todas estas questões parece bastante óbvia, até porque a indústria alimentar que vende produtos altamente açucarados, gordurosos e salgados é a mesma que vende produtos lácteos para bebés, produtos fortificados em vitaminas e minerais e produtos light, onde pode beneficiar do mesmo sabor com muito menos calorias.

Sabendo do impacto que estes alimentos ultratransformados podem ter nas pessoas mais vulneráveis e dos elevados números de excesso de peso e obesidade em Portugal, cabe à política fazer o seu papel na regulação do mercado. Proibir estes alimentos nunca será solução, mas dificultar o acesso aos mesmos ajuda e existem provas recentes disso. O imposto adicional sobre as bebidas açucaradas criado em 2017 foi um sucesso quer na receita fiscal (que reverte para o SNS), quer na redução do consumo destas bebidas (menos seis toneladas de açúcar ingerido apenas no primeiro ano da medida), mas sobretudo na capacidade que teve de pressionar a indústria a lançar bebidas com cada vez menos açúcar no mercado (quem trabalha em nutrição desportiva onde esse mesmo açúcar pode ser útil para a performance, já se vê com dificuldade em encontrar um refrigerante com 10% açúcar no mercado).

A título de exemplo, de 2019 a 2023 houve uma redução de 16,1% de açúcar nos refrigerantes vs uma redução média de apenas 5,44% nas restantes categorias de produtos alimentares não abrangidas pelo imposto (néctares, cereais de pequeno-almoço, leite fermentado, leite com chocolate e iogurtes). As medidas de auto-regulação que a indústria alimentar muito gosta de proclamar nunca promoveram reduções tão significativas no teor de açúcar dos alimentos, nem a esta velocidade.

Nos últimos meses surgiu a narrativa de que, não tendo os números de obesidade infantil diminuído, este imposto seria discriminatório para o sector. Este é um raciocínio muito enviesado, dado que existem muitos outros alimentos que podem justificar o aumento de peso e nunca saberíamos como teriam evoluído esses números caso esse imposto não tivesse sido criado (possivelmente teriam continuado a aumentar). Existe uma excelente reflexão do prof. Pedro Graça sobre o tema que dissipa todas as dúvidas em relação a este tema.

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Ainda assim, seria necessária uma política transversal a outros produtos (infelizmente, um imposto semelhante sobre o sal foi chumbado em 2018), porque, face à evidência crescente de que resistir a estes alimentos não passa apenas por uma questão de “força de vontade”, equacionar um imposto adicional sobre os alimentos que agreguem uma grande junção de açúcar, sal e gordura poderia ser útil. Por isso, da mesma forma que a indústria alimentar está no seu direito de usar a ciência para produzir alimentos altamente atractivos para consumo humano, a política também está no seu direito de taxá-los adicionalmente de forma a tornar mais difícil o seu acesso a uma população mais vulnerável.

A redução do tamanho das porções individuais (tal como já se fez com os pacotinhos de açúcar a acompanhar o café e pacotinhos individuais de manteiga), é outro dos bons exemplos de articulação da indústria alimentar com a saúde, se bem que nem sempre de uma forma totalmente honesta, porque esta reduflação (pagar o mesmo por uma embalagem menor) é um fenómeno cada vez mais recorrente.

Uma outra acção importante e com evidência de resultado seria a proibição da venda desses mesmos produtos nas caixas dos hipermercados (e até de lojas eletrodomésticos), pois essas compras por impulso podem por um lado boicotar toda a organização de alguém que levou uma lista de compras especificamente para resistir a esses estímulos, e sobretudo por ficar muito mais vulnerável à compra desses produtos quando se vê obrigada a ir às compras com os filhos. Podem continuar a ser permitidas a venda de pilhas, produtos de higiene, pastilhas elásticas e outros produtos de conveniência, mas todos os outros alimentos atrás mencionados deveriam ser eliminados. Certamente que todas as grandes cadeias de distribuição compreenderão a medida até para serem coerentes com muitas das políticas de saúde ocupacional e sustentabilidade que fazem orgulhosamente questão de mencionar.

Portugal está em 19.º lugar europeu do Nanny State Index (índice que avalia a carga fiscal presente em refrigerantes, álcool, tabaco normal e electrónico) atrás de países como Noruega, Finlândia, Irlanda, Suécia, Reino Unido, França, Países Baixos e Dinamarca, o que revela que taxar em prol da saúde pública não é uma medida “terceiro-mundista”, nem castradora das “liberdades individuais” cujo resultado é uma sobrecarga gigantesca ao Serviço Nacional de Saúde.

Do lado dos consumidores, também é importante “fazer” mais do que “falar”. Muitas tentativas de algumas marcas lançarem produtos mais saudáveis no mercado são “boicotadas” porque as vendas são miseráveis e os produtos descontinuados, pois o objectivo de qualquer empresa é ter o máximo de lucro. É sempre mais fácil e reconfortante atirar as responsabilidades para o lado e não fazer a nossa parte. Por isso, se for daqueles que vê na indústria alimentar um “diabo” que coloca no seu carrinho de compras alimentos ultraprocessados sem se aperceber, da próxima vez que for a um hipermercado pense duas vezes no que coloca lá dentro e no sinal que está a transmitir a essa indústria com os seus hábitos de consumo.

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