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Arquitectura do silêncio: estes edifícios bósnios guardam histórias de violação
Se as paredes destes edifícios da Bósnia-Herzegovina falassem, contariam histórias das violações sistemáticas de mulheres que ocorreram durante a guerra, entre 1992 e 95. Silent Witness deu-lhes voz.
Por fora, são apenas edifícios da Bósnia-Herzegovina: escolas, pavilhões desportivos, edifícios industriais ou administrativos, hotéis, fábricas, museus, mesquitas, habitações. Mas se as suas paredes falassem, contariam histórias das violações sistemáticas de mulheres que ocorreram durante a guerra que se seguiu ao desmantelamento da Jugoslávia, entre 1992 e 1995, que a ONU estima rondarem as 20 mil.
“Como é possível relaxar no interior de um hotel onde foram cometidas violações sistemáticas?”, pergunta a fotógrafa alemã Cornelia Suhan nas páginas do fotolivro que assina, intitulado Silent Witness, editado pela Gost Books, em Março. “E as crianças que estudam dentro nas salas de aulas onde as suas avós podem ter sido violadas? Como é possível?”
A relação da alemã, especializada em fotografia de arquitectura, com a Bósnia e Herzgovina é de longa data e está relacionada com o estabelecimento de um centro de terapia para mulheres vítimas de violação em Tuzla, na zona leste do país. “Tenho visitado a Bósnia ano após ano desde 1993”, escreve no posfácio. Falhou apenas no ano do nascimento da sua filha, 1995, que ficou marcado pelo genocídio de Sbrenica.
Durante muitos anos, até 2018, ano em que deu início ao projecto fotográfico, Cornelia Suhan passava por edifícios onde crimes tinham sido cometidos e pensava no que havia ocorrido no seu interior. “Estão espalhados por todo o território bósnio em lugares inócuos”, escreve. “Muitas vezes abandonados, os edifícios estão simplesmente ali, sem qualquer indicação dos crimes que ocorreram no interior. As paredes mortas das casas pareciam olhar-me fixamente.”
Através da sua organização, mas não exclusivamente, Cornelia chegou ao contacto com muitas das vítimas de violação que partilharam o seu testemunho no livro. “Até hoje, apesar dos inúmeros julgamentos de crimes de violação que tiveram lugar no país, muitas mulheres não obtiveram justiça porque os perpetradores são absolvidos ou os registos dos julgamentos são obstruídos.” Conta também que, no país, o tema da violência sexual em contexto de guerra ainda é “um peão nas batalhas ideológicas com base étnica”. “Mal existe ainda espaço para uma pausa, para o luto, para compreender e homenagear as vítimas.”
Entre as mulheres, o silêncio está a quebrar-se. Um dos factores que contribuiu para isso é a atribuição de pensões por parte do governo bósnio, desde 2006, às vítimas de guerra – onde estão incluídas as mulheres vítimas de violação. Silent Witness contém dezenas de relatos de mulheres que foram vítimas de violação justapostas às fotografias dos locais onde o crime que sofreram foi perpetrado. A por vezes extrema violência das memórias narradas na primeira pessoa pelas mulheres contrasta brutalmente com o silêncio e inocuidade das imagens – e é nesse contraste que reside o poder comunicativo deste livro.
Os relatos são intensos e incluem, não raramente, descrições detalhadas do contexto em que ocorreram as violações. Esse contexto está impregnado de morte violenta, de terror e de inclemência por parte de soldados das várias facções do conflito. As vítimas, ora bósnias, ora croatas ou sérvias, sofreram às mãos uns dos outros crimes semelhantes. O objectivo de Cornelia foi retirar da equação qualquer ideologia ou beneficiar qualquer etnia.
Fikreta, natural da terceira maior cidade da Bósnia e Herzgovina, Tuzla, espreita através da janela de uma casa dilapidada. Na sua companhia estão a sua mãe e duas outras mulheres que observam o interior do edifício. Após ter assistido ao assassinato do seu pai numa aldeia próxima, foi naquela casa que, com apenas 15 anos, Fikreta foi vítima de violação por parte de um soldado sérvio. “Ainda tenho pesadelos hoje”, contou a mulher à fotógrafa alemã. “Quando durmo, parece que estou em queda. Eles perseguem-me, correm atrás de mim, e eu corro, corro, mas não consigo escapar. E começo a gritar durante o sono."
Em 1992, no início da guerra, Emina, de Mramor (Tuzla), foi levada com a sua família por soldados sérvios para um campo de concentração perto de Zvornik, na Republika Srpska. No interior de um edifício onde operava uma empresa de bordados, Emina foi violada três vezes "por pessoas que não conhecia". "Para além da violação, assisti a tortura e agressões de terceiros. A minha irmã e eu fomos forçadas a lançar um corpo desmembrado para o rio Drina."
No interior da escola primária de Bradina, no município de Konjic, mulheres, crianças e idosos que sobreviveram ao massacre de Bradina tiveram as suas jóias e bens de valor confiscados. As meninas e mulheres foram violadas. Em Julho de 1992, os soldados violaram 15 mulheres. Cerca de 15 prisioneiros do sexo masculino também sofreram violações por parte dos soldados.
“Uma guerra não acaba quando as armas se silenciam”, escreve Cornelia. Na mente de quem sofreu ou testemunhou a violência da guerra, as armas continuam a retumbar, a dilacerar, a magoar. “Aprendi na Bósnia a adaptar-me à lentidão do processo de tornar estes crimes visíveis. Até hoje, as mulheres também tardam a perfurar o discurso público.” Algumas das mulheres que Cornelia fotografou contaram as suas histórias diante de outras câmaras, esperando ser vistas e o crime de que foram alvo reconhecido. “Elas falaram também em nome de todas as que escolheram manter o silêncio. Todas elas, apesar dos inúmeros projectos que existem para apoiá-las, vivem sozinhas a sua dor. Foi a sua solidão, a sua invisibilidade e a sua coragem que me levou a fotografar.”