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Arquitectura do silêncio: estes edifícios bósnios guardam histórias de violação

Se as paredes destes edifícios da Bósnia-Herzegovina​ falassem, contariam histórias das violações sistemáticas de mulheres que ocorreram durante a guerra, entre 1992 e 95. Silent Witness deu-lhes voz.

"Para além de serem submetidas a tortura psicológica e trabalho forçado, as mulheres eram violadas diariamente." Propriedade agrícola 'Semberija', em Bijeljina (campo de detenção durante a guerra). 44°51'13.0"N 19°11'47.0"E. ©Cornelia Suhan
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"Para além de serem submetidas a tortura psicológica e trabalho forçado, as mulheres eram violadas diariamente." Propriedade agrícola 'Semberija', em Bijeljina (campo de detenção durante a guerra). 44°51'13.0"N 19°11'47.0"E. ©Cornelia Suhan

Por fora, são apenas edifícios da Bósnia-Herzegovina​: escolas, pavilhões desportivos, edifícios industriais ou administrativos, hotéis, fábricas, museus, mesquitas, habitações. Mas se as suas paredes falassem, contariam histórias das violações sistemáticas de mulheres que ocorreram durante a guerra que se seguiu ao desmantelamento da Jugoslávia, entre 1992 e 1995, que a ONU estima rondarem as 20 mil.

“Como é possível relaxar no interior de um hotel onde foram cometidas violações sistemáticas?”, pergunta a fotógrafa alemã Cornelia Suhan nas páginas do fotolivro que assina, intitulado Silent Witness, editado pela Gost Books, em Março. “E as crianças que estudam dentro nas salas de aulas onde as suas avós podem ter sido violadas? Como é possível?”

A relação da alemã, especializada em fotografia de arquitectura, com a Bósnia e Herzgovina é de longa data e está relacionada com o estabelecimento de um centro de terapia para mulheres vítimas de violação em Tuzla, na zona leste do país. “Tenho visitado a Bósnia ano após ano desde 1993”, escreve no posfácio. Falhou apenas no ano do nascimento da sua filha, 1995, que ficou marcado pelo genocídio de Sbrenica.

Durante muitos anos, até 2018, ano em que deu início ao projecto fotográfico, Cornelia Suhan passava por edifícios onde crimes tinham sido cometidos e pensava no que havia ocorrido no seu interior. “Estão espalhados por todo o território bósnio em lugares inócuos”, escreve. “Muitas vezes abandonados, os edifícios estão simplesmente ali, sem qualquer indicação dos crimes que ocorreram no interior. As paredes mortas das casas pareciam olhar-me fixamente.”

Através da sua organização, mas não exclusivamente, Cornelia chegou ao contacto com muitas das vítimas de violação que partilharam o seu testemunho no livro. “Até hoje, apesar dos inúmeros julgamentos de crimes de violação que tiveram lugar no país, muitas mulheres não obtiveram justiça porque os perpetradores são absolvidos ou os registos dos julgamentos são obstruídos.” Conta também que, no país, o tema da violência sexual em contexto de guerra ainda é “um peão nas batalhas ideológicas com base étnica”. “Mal existe ainda espaço para uma pausa, para o luto, para compreender e homenagear as vítimas.”

Entre as mulheres, o silêncio está a quebrar-se. Um dos factores que contribuiu para isso é a atribuição de pensões por parte do governo bósnio, desde 2006, às vítimas de guerra – onde estão incluídas as mulheres vítimas de violação. Silent Witness contém dezenas de relatos de mulheres que foram vítimas de violação justapostas às fotografias dos locais onde o crime que sofreram foi perpetrado. A por vezes extrema violência das memórias narradas na primeira pessoa pelas mulheres contrasta brutalmente com o silêncio e inocuidade das imagens – e é nesse contraste que reside o poder comunicativo deste livro.

Os relatos são intensos e incluem, não raramente, descrições detalhadas do contexto em que ocorreram as violações. Esse contexto está impregnado de morte violenta, de terror e de inclemência por parte de soldados das várias facções do conflito. As vítimas, ora bósnias, ora croatas ou sérvias, sofreram às mãos uns dos outros crimes semelhantes. O objectivo de Cornelia foi retirar da equação qualquer ideologia ou beneficiar qualquer etnia.

Fikreta, natural da terceira maior cidade da Bósnia e Herzgovina, Tuzla, espreita através da janela de uma casa dilapidada. Na sua companhia estão a sua mãe e duas outras mulheres que observam o interior do edifício. Após ter assistido ao assassinato do seu pai numa aldeia próxima, foi naquela casa que, com apenas 15 anos, Fikreta foi vítima de violação por parte de um soldado sérvio. “Ainda tenho pesadelos hoje”, contou a mulher à fotógrafa alemã. “Quando durmo, parece que estou em queda. Eles perseguem-me, correm atrás de mim, e eu corro, corro, mas não consigo escapar. E começo a gritar durante o sono."

Em 1992, no início da guerra, Emina, de Mramor (Tuzla), foi levada com a sua família por soldados sérvios para um campo de concentração perto de Zvornik, na Republika Srpska. No interior de um edifício onde operava uma empresa de bordados, Emina foi violada três vezes "por pessoas que não conhecia". "Para além da violação, assisti a tortura e agressões de terceiros. A minha irmã e eu fomos forçadas a lançar um corpo desmembrado para o rio Drina."

No interior da escola primária de Bradina, no município de Konjic, mulheres, crianças e idosos que sobreviveram ao massacre de Bradina tiveram as suas jóias e bens de valor confiscados. As meninas e mulheres foram violadas. Em Julho de 1992, os soldados violaram 15 mulheres. Cerca de 15 prisioneiros do sexo masculino também sofreram violações por parte dos soldados.

“Uma guerra não acaba quando as armas se silenciam”, escreve Cornelia. Na mente de quem sofreu ou testemunhou a violência da guerra, as armas continuam a retumbar, a dilacerar, a magoar. “Aprendi na Bósnia a adaptar-me à lentidão do processo de tornar estes crimes visíveis. Até hoje, as mulheres também tardam a perfurar o discurso público.” Algumas das mulheres que Cornelia fotografou contaram as suas histórias diante de outras câmaras, esperando ser vistas e o crime de que foram alvo reconhecido. “Elas falaram também em nome de todas as que escolheram manter o silêncio. Todas elas, apesar dos inúmeros projectos que existem para apoiá-las, vivem sozinhas a sua dor. Foi a sua solidão, a sua invisibilidade e a sua coragem que me levou a fotografar.”

"Mulheres, crianças e idosos foram trazidos para esta escola. Os soldados confiscaram as suas jóias e outros pertences de valor." Mulheres e meninas sofreram abusos sexuais e violações. "Os homens também foram violados por soldados." Bradina – Escola primária de Konjic, 43°44'38.3"N, 18°01'07.9"E.
"Mulheres, crianças e idosos foram trazidos para esta escola. Os soldados confiscaram as suas jóias e outros pertences de valor." Mulheres e meninas sofreram abusos sexuais e violações. "Os homens também foram violados por soldados." Bradina – Escola primária de Konjic, 43°44'38.3"N, 18°01'07.9"E. ©Cornelia Suhan
Fikreta mostra à mãe e a duas outras mulheres a casa onde sofreu uma violação aos 15 anos. “Ainda tenho pesadelos hoje. Quando durmo, parece que estou em queda do céu. Eles perseguem-me, correm atrás de mim, e eu corro, corro, não consigo escapar. E começo a gritar durante o sono", conta.
Fikreta mostra à mãe e a duas outras mulheres a casa onde sofreu uma violação aos 15 anos. “Ainda tenho pesadelos hoje. Quando durmo, parece que estou em queda do céu. Eles perseguem-me, correm atrás de mim, e eu corro, corro, não consigo escapar. E começo a gritar durante o sono", conta. ©Cornelia Suhan
"O chetnik disse 'vai para ali'. Mandou-me despir. As lágrimas desciam-me pelo rosto e estava sem palavras. Não podia dizer nada. Tremia. Ele arrancou-me as roupas e violou-me. Depois disse-me: 'ouve-me, vem aí outro homem.' Eu desmaiei." Residência privada em Kamenica, 44°19'47.4"N 19°3'8.4"E.
"O chetnik disse 'vai para ali'. Mandou-me despir. As lágrimas desciam-me pelo rosto e estava sem palavras. Não podia dizer nada. Tremia. Ele arrancou-me as roupas e violou-me. Depois disse-me: 'ouve-me, vem aí outro homem.' Eu desmaiei." Residência privada em Kamenica, 44°19'47.4"N 19°3'8.4"E. ©Cornelia Suhan
"O campo de Caparde existiu no período de Junho a Julho de 1992, durante o qual foram cometidos homicídios e violações durante a deportação da população bósnia de Podrinje e Posavina (Declaração das Associações de Vítimas de Agressão 1992-1995). Controlado pelo Exército Sérvio da Bósnia. (Testemunha Snaga Zene). Osmaci Caparde, 44°23'49.9"N 18°58'12.2"E.
"O campo de Caparde existiu no período de Junho a Julho de 1992, durante o qual foram cometidos homicídios e violações durante a deportação da população bósnia de Podrinje e Posavina (Declaração das Associações de Vítimas de Agressão 1992-1995). Controlado pelo Exército Sérvio da Bósnia. (Testemunha Snaga Zene). Osmaci Caparde, 44°23'49.9"N 18°58'12.2"E. ©Cornelia Suhan
"Um [do grupo paramilitar Republika Srpska] foi acusado e condenado, entre muitos crimes, de violar 14 mulheres nas suas casas." Sarajevo – Edifício residencial. 43°51'01.4"N 18°23'45.4"E.
"Um [do grupo paramilitar Republika Srpska] foi acusado e condenado, entre muitos crimes, de violar 14 mulheres nas suas casas." Sarajevo – Edifício residencial. 43°51'01.4"N 18°23'45.4"E. ©Cornelia Suhan
"Era um edifício de uma fábrica de madeira que durante a guerra serviu como sede do Partido Democrático Sérvio e de formações paramilitares sérvias em Ilidza, subúrbio de Sarajevo. A sua cave serviu como centro de detenção para civis do sexo masculino, uma mulher idosa e uma mulher de cerca de 28 anos. A jovem foi violada no local. Hoje é um hotel." Sarajevo. Ilidža Šipad’s Villa 43°49'25.7"N 18°17'58.9"E.
"Era um edifício de uma fábrica de madeira que durante a guerra serviu como sede do Partido Democrático Sérvio e de formações paramilitares sérvias em Ilidza, subúrbio de Sarajevo. A sua cave serviu como centro de detenção para civis do sexo masculino, uma mulher idosa e uma mulher de cerca de 28 anos. A jovem foi violada no local. Hoje é um hotel." Sarajevo. Ilidža Šipad’s Villa 43°49'25.7"N 18°17'58.9"E. ©Cornelia Suhan
"Neste local, meninas e jovens mulheres foram violadas sistematicamente. De acordo com testemunhos, os soldados batiam-lhes com bastões, davam-lhes pontapés e ordenavam-lhes que se despissem. Eram violadas à vez em períodos de duas a três horas. Quando regressavam ao grupo, as mulheres não falavam sobre o assunto, nem com as pessoas mais próximas." Višegrad Vilina Vlas, Spa Hotel 43°49'13.0"N 19°18'30.0"E.
"Neste local, meninas e jovens mulheres foram violadas sistematicamente. De acordo com testemunhos, os soldados batiam-lhes com bastões, davam-lhes pontapés e ordenavam-lhes que se despissem. Eram violadas à vez em períodos de duas a três horas. Quando regressavam ao grupo, as mulheres não falavam sobre o assunto, nem com as pessoas mais próximas." Višegrad Vilina Vlas, Spa Hotel 43°49'13.0"N 19°18'30.0"E. ©Cornelia Suhan
No campo de concentração de Liplje, "uma mulher conta ter visto o seu padrasto a ser violado em frente às suas filhas". "Era algo que acontecia frequentemente e em massa. Os violadores chetniks não diferenciavam entre homens, mulheres ou crianças, violavam e abusavam sexualmente quem e quando quisessem." Zvornik – aldeia de Liplje, 44°21'32"N,19°3'59”E.
No campo de concentração de Liplje, "uma mulher conta ter visto o seu padrasto a ser violado em frente às suas filhas". "Era algo que acontecia frequentemente e em massa. Os violadores chetniks não diferenciavam entre homens, mulheres ou crianças, violavam e abusavam sexualmente quem e quando quisessem." Zvornik – aldeia de Liplje, 44°21'32"N,19°3'59”E. ©Cornelia Suhan
Capa do livro <i>Silent Witness</i>, de Cornelia Suhan, editado pela Gost Books, em Março de 2024
Capa do livro Silent Witness, de Cornelia Suhan, editado pela Gost Books, em Março de 2024