Such Brave Girls, uma família muito disfuncional
Com o selo da produtora de culto A24, esta criação cómica da britânica Kat Sadler mina a sua saúde mental e vida real para fazer arte, com a ajuda da irmã, com quem contracena.
Josie, que vive no Noroeste britânico, tem problemas de saúde mental e vive atormentada por um trauma. A sua mãe, Deb, diz sobre ela coisas do estilo: “Ela não sabe o que a faz feliz. Felizmente, eu sei.” Para Deb, a filha tem “andado a experimentar” ideias sobre “quem é e o que quer”, bem como sobre os seus “sentimentos”, algo que a Deb não se afigura nada de bom. Josie tem ainda uma irmã, Billie, com uma vontade grande de que gostem dela, custe o que custar, leia-se uma necessidade de validação. Há dez anos, o pai de ambas abandonou a família. Disse que ia comprar saquetas de chá e nunca mais voltou. Para trás ficou uma dívida que elas ainda hoje estão a tentar pagar. Moram as três juntas, de uma forma muito disfuncional.
É esta a dinâmica e a premissa da série Such Brave Girls – o nome é irónico, elas não são nada corajosas –, criada e protagonizada por Kat Sadler, que assume o papel de Josie. São seis episódios que chegam ao Filmin nesta terça-feira, cheios de comédia pouco apropriada e gente que, não sendo mal-intencionada, está constantemente a fazer a coisa errada.
Há maus namorados, péssimos mesmo. O de Billie, por exemplo, é um pequeno traficante de droga que não quer saber dela – e ainda assim Billie vive obcecada por ele. Já a matriarca Deb está envolvida com um homem que tem uma casa grande e as poderá ajudar a sair do buraco em que vivem. É com ele que Deb fala abertamente da forma como ter a primeira filha lhe destruiu a vida. Josie, por sua vez, foge da pessoa de quem gosta.
Pelo meio desta série, que se estreou na BBC em Novembro, assistem-se a muitas crises, possíveis gravidezes, uma falta gritante de amigas, pequenas mentiras e exploração de questões de orientação sexual e de classe. As filhas apanham a mãe a praticar actos sexuais, a mãe, por seu turno, ouve-as. Tudo com muita candura, mas intenso. Such Brave Girls tem o selo A24, a produtora e distribuidora independente americana que no ano passado foi responsável pelo filme que ganhou o Óscar de Melhor Filme, Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo.
A série mina a própria vida real das suas protagonistas. Não só a da criadora. Sadler começou por fazer stand-up e depois tornou-se argumentista e canalizou a sua vida para Such Brave Girls. Esteve institucionalizada depois de ter tentado, duas vezes, pôr fim à sua própria vida. No seu perfil de Instagram pode ler-se “Eu escrevo comédia para pessoas mentalmente doentes”, e não será certamente mentira. Na vida real, a irmã de Sadler é Lizzie Davidson, a quem cabe o papel de “irmã” na série, e tem, de facto, uma dívida que terá, algum dia, de ser paga. O papel da personagem Deb cabe à actriz Louise Brealey, antiga crítica de cinema, que ganhou alguma notoriedade em séries como Casualty, Sherlock ou Death in Paradise.
De nenhuma delas se pode dizer que sejam actrizes com muita tarimba: Sadler só tem outro crédito enquanto actriz, numa curta de 2018; Davidson não tem qualquer experiência anterior. Em entrevistas à imprensa no lançamento da série, falam mesmo de partilharem as personalidades das suas versões ficcionais. É algo que resulta bem. Quando, há uns anos, as duas irmãs (“Sadler” é nome artístico, ambas têm Davidson como apelido) desabafaram ao telefone uma com a outra sobre isto tudo, desataram a rir-se e decidiram transformar o infortúnio em arte. Nasceu assim uma óptima e recomendável nova voz cómica britânica.