Os miúdos são uns monstros e fazem tudo o que querem
Como sabemos, o cérebro humano prefere as explicações fáceis às complexas, e adora bodes expiatórios.
Querida Mãe,
Não sei se é do algoritmo, mas agora estou sempre a ver comentários sobre como os miúdos estão tão mal-educados, como têm a vida tão facilitada que já nem sabem o que é a frustração. Como os pais são demasiado permissivos, criando uma geração de monstros. Mesmo nos comentários àquele áudio absolutamente sinistro que a TVI revelou, e em que uma professora grita, insulta, humilha e ameaça uma criança do 1.º ano, não faltava esta narrativa. Ora esta narrativa pressupõe que:
- as nossas crianças têm exatamente tudo o que querem;
- os problemas de comportamento devem-se à parentalidade.
É uma maneira muito prática de contar a história porque, basicamente, retira a responsabilidade a todo o resto da sociedade.
Vamos esclarecer uma coisa: as crianças portuguesas passam, ao todo, 5460 horas em sala de aula durante o 1.º ciclo do ensino básico (a antiga primária), mais que as 4258 horas da média da União Europeia, e isto sem contar com as horas em que praticam atividades extracurriculares, ou estão nos avós ou no ATL, sem os pais.
Por seu lado, os pais destas crianças trabalham uma média de 39,9 horas por semana, mais que a média de 37,5 horas do resto da Europa e os professores destas crianças trabalham cerca de 50 horas por semana.
Mais uns números: Portugal é o segundo país da OCDE com o maior consumo de antidepressivos, e um estudo da OMS mostra que a percentagem dos nossos alunos que gosta muito da escola caiu para um terço, nos últimos 20 anos.
Só mais um: os estudantes portugueses também estão abaixo da média na prática de exercício físico.
Mãe, não lhe parece que todo este contexto chegava para explicar a tendência para um aumento de conflitos entre gerações? Não podemos concordar que precisamos de arrumar a casa, porque o “sistema” está a falhar-nos a todos? A nós, adultos, mas ainda mais a eles, enquanto crianças? Que, na verdade, estes miúdos estão longe de fazerem ou terem tudo o que querem — porque a maior parte deles começava logo por querer estar mais tempo com os pais.
Este ritmo de vida, que nos está a pôr a todos doentes, é insustentável. Esta aceleração e ansiedade constante provoca, sem sombra de dúvida, os distúrbios e comportamentos que as crianças (e os adultos) estão a revelar. Não é por acaso que os professores estão a “passar-se”, mas também não é por acaso que os miúdos estão a revoltar-se.
É preciso mudar isto. Sei que não é fácil, que não é só uma coisa, mas começa por reconhecermos de que é muito mais do que apenas “a falta de um açoite na hora certa”. O comportamento é sempre uma forma de comunicação e todos estes miúdos mais complicados estão a gritar por ajuda.
Querida Ana,
Basta confrontar-nos com a mão cheia de números que conjugas nesta birra para perceber porque é que preferimos culpar os pais e pensar que com um puxão de orelhas, isto ia lá. É tão mais fácil. E, como sabemos, o cérebro humano prefere as explicações fáceis às complexas, e adora bodes expiatórios.
O problema da narrativa que defende que as crianças e os adolescentes estão mais complicados porque os pais não os sabem educar e frustrar, é que encara a “parentalidade” como uma entidade autónoma, como se fosse um programa de computador que se compra e se instala e já está. Mas é mentira. Somos os melhores pais que conseguimos no contexto em que nos inserimos e com a bagagem que trazemos, e precisamos da ajuda uns dos outros, em lugar de dedos apontados.
Por isso subscrevo o teu apelo: vamos lá deixar as orelhas em paz e puxar é pela cabeça, e reconhecendo que a mudança começa em cada um de nós, deitar novos ingredientes no caldeirão, na esperança de que a poção dê melhores resultados e não nos transforme a todos em sapos.
Beijinhos
O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990