Não tenho medo

Não tenho medo das pessoas que deambulam pelas ruas à noite. Sejam elas notívagos, trabalhadores de turnos, boémios, párias, errantes, marginais... Por vezes até inverto o enunciado.

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"Tenho medo do dia em que as pessoas de quem gosto não vão estar aqui" Rita Lagarto
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Adoro metrópoles. Cidades enormes, organismos de gente, automóveis, ruído, movimento e palpitação. Adoro as artérias, as avenidas, as massas de carros que se deslocam, as vagas de pés que atravessam passadeiras, as silhuetas dos prédios altos a incidirem sobre as cabeças que circulam pequeninas — cheias de pensamentos que se cruzam sem nunca se tocarem — como glóbulos na corrente sanguínea, sem imaginarem que vistas do céu se comportam como células de uma criatura, de um monstro — mesmo aquelas que se atrevem sozinhos pelas ruas desertas (uma célula que se perdeu). E gosto de olhar para cima e imaginar por onde andará a cabeça do monstro.

Se estiver numa festa que aconteça no último piso de um prédio alto, procuro sempre afastar-me das conversas de ocasião para vir à varanda deitar um olhar sobre a cidade, sobretudo se for de noite, para espreitar as luzes, as fendas e as sombras que crescem na escuridão da cidade, propensa ao imprevisto, ao inesperado.

A maior cidade onde estive foi Xangai. Vivi durante três meses nesse lugar onde tudo o que eu conhecia do mundo se invertia, onde a minha crença sobre ser uma “entidade única especial” esbarrava na necessidade de atravessar a estrada, rodeada por uma multidão de centenas de outras “entidades únicas e especiais” com quem eu tinha de acertar a passada, sob o risco de ser esmagada pelo fluxo de automóveis que avançavam independentemente da cor do semáforo.

Foi em Xangai que me senti ainda mais minúscula: se em Portugal já achava que o meu modesto metro e cinquenta e nove centímetros, muitas vezes não estava à altura dos acontecimentos, na China passei a sentir-me com dois centímetros de importância, reduzida de protagonismo entre os milhares de pessoas que me rodeavam diariamente. Por vezes o coletivo era tão poderoso, que quando aconteceu ser feriado nacional, cerca de seis milhões de pessoas (aproximadamente 12 milhões de pés) pisaram a rua do Bund, onde eu estava hospedada, e os meus dois pés e respetivo corpo a eles associado, bem puderam esquecer a autodeterminação — seguiam simplesmente por onde a multidão os levasse. Entre mim e a multidão, nenhuma fronteira, só fusão. O mesmo se passava fosse dia ou noite.

Lisboa está longe de ser uma dessas metrópoles imensas que não dorme (exceção feita aos órgãos vitais em funções — os médicos de serviço, os coletores de lixo, os guardas noturnos, e todos os que mantêm o organismo a respirar enquanto o resto dos não-noctívagos repousa em sono REM). Ainda assim, quando cheguei à cidade, vinda de outra substancialmente mais pequena, Lisboa pareceu-me assustadoramente enorme. Cheia de vielas, ruas indecifráveis, portas misteriosas na Avenida Duque de Loulé, homens engravatados no Saldanha, personagens fictícias na Avenida Almirante Reis.

Mudei de casa e de bairro inúmeras vezes… Inúmeras! Romantizando uma filosofia de vida-nómada-de-livre-espírito que não era mais do que a minha submissão financeira às flutuações do mercado de arrendamento. Aos poucos passei a habitar Lisboa com a mesma intimidade com que habitamos uma casa à qual conhecemos cegamente as esquinas, os segredos, as imperfeições. Uma casa na qual sabemos exatamente qual o cantinho onde a luz incide a uma hora específica do dia e que consegue transformar qualquer desatino numa melancolia alaranjada e renascentista; onde elegemos o sítio em que gostamos de ficar sozinhos, ou o recanto onde só cabemos acompanhados; na qual reconhecemos um ângulo cego para onde desaparecem misteriosamente as coisas e os objetos que não voltamos a encontrar, mesmo depois de virar a casa do avesso… Ou onde garantimos o lugar onde guardamos as recordações e as memórias, e onde voltamos repetidamente, mesmo sem querer, como se os nossos pés tivessem autodeterminação — desligados da cabeça e obedientes ao ritmo cardíaco.

Vivi no coração da cidade durante anos, e tinha por hábito fazer longos passeios noturnos, sozinha, pelas ruas desertas e silenciosas. Como um médico legista que se atrai pelo corpo desnudo, aberto, reduzido à sua matéria imóvel, mas ainda quente, que percorre os vasos, os canais, as artérias esvaziadas de fluxo e animação, para espreitar as entranhas. Sabia que enquanto a cidade dormia, a noite abria a cortina para outra dimensão…

“Não tens medo de andar assim sozinha na rua, à noite?”

“Medo? De quê?”

“Medo que te façam mal!”

Nunca tive medo. Não por ser corajosa. Sou uma medricas de primeira. Mas aquilo que me apavora não são os desconhecidos, os sobressaltos, as delinquências, os pequenos delitos. Não tenho medo das pessoas — pequeninas a circular no corpo do monstro. Tenho medo de coisas grandes, megalómanas.

Tenho medo, por exemplo, que o responsável pelas ogivas nucleares de uma grande potência adormeça sem querer e deixe cair a testa sobre o botão que dispara a bomba atómica que erradique a Humanidade; tenho medo de ser eu a adormecer e não comparecer a um voo de longo curso para as únicas férias nos trópicos que consegui pagar na vida; tenho medo de ter uma branca e interromper um espetáculo por minha culpa em frente a centenas de pessoas num teatro à pinha; tenho medo de me rir descontroladamente quando estou com a bexiga cheia (o comportamento de uma bexiga cheia pode ser tão imprevisível), sobretudo se estiver ao pé de pessoas com dois metros de importância!

Tenho medo de me envolver romanticamente com alguém que goste de ouvir Funk da Favela; tenho medo de encontrar um médico ao serviço que seja mesmo giro, com muito sentido de humor, que por acaso até percebe de filosofia, sabe cozinhar, e gosta de fazer surpresas casuais como por exemplo dedicar-me um solo de guitarra com música e letra originais no meio de um restaurante de luz amarela — e conhecê-lo precisamente quando estiver numa consulta de urgência cheia de mau hálito e mau aspeto (pelo sim pelo não, maquilho-me quando vou ao hospital).

Tenho medo do dia em que as pessoas de quem gosto não vão estar aqui, enquanto eu ainda estou por aqui, porque afinal que raio de história é esta de não chegarmos e partirmos todos ao mesmo tempo como nos obrigavam a fazer nas tarefas do infantário: “Todos ao mesmo tempo! Só quando eu disser… Um…dois…Três!” Tenho medo de conversas de ocasião, em que fico sem ter o que dizer (prefiro aquelas conversas inesperadamente profundas que nos tomam de assalto e provocam vertigens); tenho medo de nunca mais me apaixonar; tenho medo que os meus amigos se fartem de me ouvir nas minhas repetições neuróticas em que conto demasiados detalhes da minha vida íntima, e que deixem de gostar de mim por causa disso; tenho medo que um dia, no meu aniversário, ninguém me ligue porque toda a gente se esqueceu da data, porque eu estou sempre a confundir datas de aniversários dos meus amigos! E tenho medo que me perguntem publicamente numa entrevista uma daquelas coisas que toda a gente sabe, do género “Qual a capital de Burkina Faso?” e eu não saber…

Mas não tenho medo das pessoas. Não tenho medo das pessoas que deambulam pelas ruas à noite. Sejam elas notívagos, trabalhadores de turnos, boémios, párias, errantes, marginais... Por vezes até inverto o enunciado. E eles? Não têm medo de mim? Da pessoa de um metro e cinquenta e nove, às vezes com dois centímetros de importância, às vezes com cinco metros de melancolia, que vagueia pela cidade, com a cabeça cheia de medos e repetições, como se a cidade fosse a sua casa, como se a casa fosse um monstro que se vê lá de cima da lua, enquanto ela se esqueceu de seguir com a corrente sanguínea, uma célula sozinha, perdida, quem sabe com o risco de provocar um acidente vascular por se mover distraída de headphones colados nos ouvidos como um médico legista de estetoscópio, a não respeitar os semáforos, atenta ao ritmo da música, desatenta à estrada, a caminhar errante pela noite?

Num desses passeios noturnos, quando regressava para casa, de headphones enfiados na cabeça, disposta a sentir com muita intensidade uma canção do Caetano, daquelas que se escutam só para sofrer com um certo grau de arrebatamento de videoclip, um mendigo atravessou-se à minha frente (entre ele e a noite, nenhuma fronteira, só fusão), e esticou o braço na minha direção. Não tenho medo. Vai pedir-me uma coisa pequena de certeza, pensei, um cigarro, uma moeda, a carteira. Parei a música.

“Desculpe… Há vida para além da morte?” perguntou-me. “Não sei…” (É que não sei mesmo. Ainda se me tivesse perguntado a capital de Burkina Faso.) Ele olhou-me no fundo dos olhos. Sorriu. Como quem sabe uma resposta e a guarda só para si. Depois meteu a mão no bolso e entregou-me uma espécie de origami feito com um bilhete de estacionamento da EMEL e desapareceu para um desses lugares onde desaparecem misteriosamente as coisas que nunca voltamos a encontrar… Eu guardei o origami até hoje: um monstrinho. Tenho-o naquele cantinho da casa onde guardo as recordações e as memórias. Adoro cidades. Sobretudo à noite. Não tenho medo.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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