Eternal Sunshine: Ariana Grande em ponto de caramelo

Apagar do cérebro estas melodias e harmonias? Só mesmo por intervenção médica.

Foto
Eternal Sunshine é o sétimo álbum de estúdio de Ariana Grande katia temkin

Ser músico e vedeta: para os melhores no activo, não há cá falsos dilemas. Um bom disco resulta da matemática das grandes editoras ou da alquimia em estúdio? É marketing coercivo ou poder popular aquilo que determina o sucesso? Os versos “honestos” que cantarolamos são coscuvilhice ou poesia? Quem acumula com convicção os pelouros da arte e da celebridade sabe – ou faz parecer – que é tudo ao mesmo tempo.

A frase anterior admite ene sujeitos, mas é Ariana Grande quem faz o pleno: edificar uma discografia tão fascinante como ir à sua página de Wikipédia e bisbilhotar a secção “vida pessoal” (sem o prazer mórbido de folhear a Nova Gente, à parte das alegações sobre fingir um sotaque negro e escurecer a pele). Tem tido pouco de tragicómico essa biografia, como ficou claro nos álbuns seguintes, crónicas de traumas vividos em público. A pop bipartida de Sweetener, ora extravagante ora blindada, aludia ao ataque terrorista que matou 22 fãs depois de um concerto seu na Manchester Arena em 2017; o R&B caseiro de Thank U, Next registava outro luto, em tempo real e em carne viva.

Eternal Sunshine, depois da lua-de-mel em Positions, canta o divórcio. Qualquer semelhança com o filme de Spike Jonze é propositada: surrupia-lhe o título e a ideia de apagar um ex das suas memórias. Rapidamente entendemos que esta ficção científica é incompatível com a fama, arquivada com afinco pelos media. É então que a artista recorre a outro mecanismo: suspender a sua verdade em prol do entretenimento. Como encarnar sem vergonha o papel de adúltera, como parecem desejar os tablóides? Ariana Grande explica-nos o esquema, tintim por tintim, na irresistível True story. É a batida mais ríspida do álbum, num recuo aos sons digitais com que Destiny’s Child e Brandy fecharam um milénio e abriram outro. Uma excepção aos cenários luminosos em que se desenrola Eternal Sunshine.

A pulsação electrónica de Yes, and?, único tema lançado a priori, seria publicidade enganosa – se não fosse pela desarmante We can’t be friends, catarse de água fresca à la Robyn. O resto é história do R&B contemporâneo, do norte-americano, autóctone e intrusivo, à interpretação japonesa, mais ingénua, de uma Hikaru Utada. A dominar o plano sonoro, estão o mestre sueco Max Martin e o braço-direito Ilya Salmanzadeh, exímios mesmo quando contidos. E se alguma vez Eternal Sunshine se aproxima de águas paradas, tem como respaldo a inteligente produção vocal de e por Grande (superpoder herdado de Imogen Heap ou Brandy).

Grande tem uma voz super-humana, macia e pujante, a amadurecer desde o brilhante Dangerous Woman (2016). Do açúcar fez-se caramelo, derramado sobre cada beat com rigor, mas com a devida margem para experimentar. Não está para avarias tão grandes como as de Thank U, Next (nunca esquecer Ghostin, separada à nascença de m b v, dos My Bloody Valentine), mas permite-se a alguma estranheza. A guitarra dormente de Imperfect for you cheira a Frank Ocean (era Blonde) e Elliott Smith (disco homónimo); o trombone cavernoso de Ordinary things não envergonharia a Björk dos dias de Volta.

Desde 2016, já vão cinco grandes discos. Ariana Grande continua a demonstrar como, feliz ou infelizmente, o calculismo industrial e o génio não são mundos incomunicáveis.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários