Votar com sol ou votar com chuva

A maioria dos cidadãos entra pelas escolas adentro com as intenções de voto bem definidas, mas os indecisos — que se preocupam particularmente com o estado do tempo — andam por aí, existindo.

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Megafone P3: Votar com sol ou votar com chuva Nelson Garrido
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O sol protege a democracia. Quando as pessoas exercem o seu direito-dever de voto num dia de sol, esquecem-se (momentaneamente) de parte dos seus problemas; arrisco-me a dizer que ficam um pouco mais bem-dispostas, prestando menos atenção aos problemas crónicos do país, contudo, não os ignoram. Não negam que pagam demasiados impostos, nem perdoam o desnorte das políticas de habitação e de outras, mas, porque está sol, são permissivas e acreditam na mudança. Quando votam num dia de chuva e frio, estão mais cabisbaixas e desiludidas com o Estado da Nação e com as forças partidárias do costume, acabando, por isso, a desenhar xis nos quadradinhos dedicados a partidos menos confiáveis e convencionais, mas igualmente legítimos.

A maioria dos cidadãos entra pelas escolas e sedes de juntas de freguesia adentro com as intenções de voto bem definidas, mas os indecisos — que se preocupam particularmente com o estado do tempo — andam por aí, existindo em bom número, ainda que sejam menos do que aqueles que, por burrice, incapacidade ou preguiça, se abstêm. As sondagens à boca das urnas aproveitam-se destes indecisos, cujo espírito volátil tem a capacidade de virar eleições das formas mais inexplicáveis e surpreendentes.

Quando Sophia escreve "Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo", não se refere, claro, aos cidadãos que vão dependendo do estado do tempo — e de estados de alma — para votar de um modo responsável, mas, para efeitos de crónica, vamos assumir que sim, até porque há muita poesia no acto de acordar cedo para ir votar.

Ensonados, despertamos cientes do privilégio que temos. É bom quando ninguém decide por nós. Chegamos ao local de voto de barriga cheia, porque é desse modo que devemos votar (a fome também pode ser desviante), e pomo-nos na fila, que não se quer nem muito longa, porque a espera chateia e mói, nem muito curta, porque o sentido de responsabilidade cívica mexe connosco, inspirando-nos — a democracia envaidece-nos, porque o poder está em nós.

O momento é solene, contudo tem-se banalizado. Não perdeu, nem há-de perder a importância que lhe é intrínseca, mesmo que a abstenção só saiba crescer, mas fica-se com a ideia de que, para muitos, votar é uma mera formalidade constitucional, que pouco os serve, já que, independentemente de quem acabar a formar governo, fica sempre tudo na mesma. Pode ser que sim. Pode ser que não — é provável que, desta vez, não fique tudo na mesma, porque, hoje, também aqui, as dinâmicas estão diferentes, podendo produzir resultados justamente diferentes. Inédito: neste ponto, Portugal tem acompanhado o resto do mundo.

Mas de regresso à fila. Ao longo dela, encontramos amigos, vizinhos ou amigos que são vizinhos (e vice-versa). Trocamos dois dedos de conversa, e comentamos o episódio eleitoral, como se fosse um jogo de futebol entre velhos rivais. E, se for caso disso, dadas as confianças, a seguir à votação, combinamos beber um café, na pastelaria mais próxima, onde podemos dizer mal de tudo (dos candidatos, do país e do sistema), ou ignorar o momento democrático, que pode não merecer discussão. Ao contrário do voto, que é secreto, é público que apreciamos estas pequenas interacções, porque, por vezes, identificamos nelas pequenas correntes comunitárias, que nos fazem crer que, afinal, tratamos a democracia com o respeito que ela merece.

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