As virtudes do pensamento lento

Muitas das atividades mais valorizadas hoje, como a multitarefa e o digital, privilegiam os mecanismos atencionais, que geram uma atenção ampla, mas rasa, semelhante à de um animal selvagem.

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Uma excessiva prevalência dos mecanismos rápidos do pensamento pode implicar soluções e comportamentos errados Francesco Ungaro/pexels
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Hoje em dia, revela-se mais difícil mobilizar as crianças para a aprendizagem, se a entendermos como um processo desenvolvido a longo prazo, que inclui momentos de grande encantamento, com atividades entusiasmantes e mobilizadoras, mas também tarefas repetitivas, que necessitam de investimento, concentração, paciência e perseverança por parte dos alunos. É precisamente neste último ponto que reside a dificuldade em cativar as novas gerações para os desafios escolares, quando estes contrariam a tendência para a rapidez, a fugacidade da atenção, o imediatismo e a volatilidade de interesses.

A prevalência desta postura pode ser explicada pela sobrevalorização do pensamento rápido, que domina na atualidade. Considerado com um progresso civilizacional, este tipo de pensamento opõe-se ao pensamento lento, encarado como um retrocesso temporal. Chegados a este ponto, a pergunta que se impõe é a seguinte: será que esta visão é correta e está a ser favorável para a própria sociedade que a criou?

Antes de responder a esta questão, podemos fazer o seguinte exercício: imaginemo-nos a regressar ao cenário da vida selvagem, na qual um animal tem de dividir a sua atenção por diversas atividades para que, enquanto come, não acabe por ser comido. A consequência não é difícil de antever: o animal vê-se impossibilitado de se concentrar profundamente naquilo que tem diante de si, pois tem de estar permanentemente alerta com aquilo que está atrás de si.

Paradoxalmente, muitas das atividades mais valorizadas na atualidade, como a multitarefa e muitas atividades digitais, privilegiam este tipo de mecanismos atencionais, que geram uma atenção ampla, mas rasa, semelhante à de um animal selvagem. Tal como refere o filósofo Byung-Chul Han na obra Sociedade do Cansaço, “as mais recentes evoluções sociais e a mudança de estrutura da atenção aproximam a sociedade humana da vida selvagem”.

De acordo com a sua análise, estamos a assistir a uma deslocação de um tipo de atenção profunda para uma forma de atenção radicalmente distinta — a hiperatenção —, que se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. Esta forma de atenção multitarefa não corresponde, na sua opinião, a um progresso, mas, bem pelo contrário, a um retrocesso civilizacional.

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Hoje em dia, revela-se mais difícil mobilizar as crianças para a aprendizagem, se a entendermos como um processo desenvolvido a longo prazo Getty Images

Também é esta a visão do médico e cientista Lamberto Maffei, que aborda a diferença entre o pensamento rápido e o pensamento lento no livro com o emblemático título Elogio da Lentidão. De acordo com a sua explicação, o cérebro humano possui dois tipos de mecanismos: os primeiros são mecanismos ancestrais rápidos de resposta ao ambiente; enquanto os segundos, de caráter mais lento, desenvolvem-se mais tarde e são fruto do raciocínio.

De caráter automático ou semiautomático, os primeiros mecanismos são essenciais para a sobrevivência, como, por exemplo, quando alguém vê um tigre e foge sem sequer se questionar, ou quando retrai um membro atingido por um estímulo doloroso. Já a segunda modalidade, própria dos animais superiores, é inerente ao controlo de um ser humano sobre a sua própria vida, ao seu relacionamento com os outros indivíduos e com o meio ambiente.

Todavia, de forma totalmente contraditória, a tendência das chamadas sociedades avançadas consiste em atribuir aos mecanismos rápidos de pensamento uma posição predominante, em detrimento das formas de pensamento mais lento. Esta opção opõe-se à revalorização dos mecanismos de pensamento lento, considerados responsáveis por inverterem a seta do progresso, em nome de uma atitude tipicamente semelhante às saudades do passado. Neste contexto, tal como defende Lamberto Maffei, ir contra a corrente pode ser muito exigente. Mas, em contrapartida, seguir a maioria pode ser ainda mais redutor.

As consequências desta opção civilizacional estão à vista. O progresso tecnológico e a sua difusão capilar produziram, além de profundas mudanças sociais, uma aceleração do tempo e, consequentemente, uma verdadeira revolução do pensamento, que se tornou, também este, mais acelerado. “Na correria da vida moderna, o pensamento rápido não tem, por natureza, paciência, qualidade graças à qual sabemos esperar antes de julgar e agir, contraposta à decisão rápida do fazer, que parece ter horror ao tempo que passa”, reflete o mencionado pensador.

Mas esta revolução tem os seus riscos. Uma excessiva prevalência dos mecanismos rápidos do pensamento, designados por pensamento rápido ou digital, pode implicar soluções e comportamentos errados, danos na educação e, em geral, na vivência civil. A consciência destes riscos representa, simultaneamente, uma oportunidade e um convite para reconsiderarmos as potencialidades do chamado pensamento lento, inclusivamente ao nível da educação escolar. São precisamente estas potencialidades que nos permitem estabilizar a atenção, aprofundar o pensamento, apostar na duração e desenvolver a ética, mais necessária do que nunca para dar resposta aos novos desafios com que se confronta a Humanidade.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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