“Eu queria ser marinheira, o meu país não deixou”

Maria quer que neste 8 de Março se fale de mulheres e das várias limitações por o serem, não apenas as profissionais.

Foto
As mulheres não podiam frequentar a Escola Naval, nem serem nadadoras-salvadoras Sérgio Azenha/Arquivo
Ouça este artigo
00:00
03:22

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Há pouco mais de 30 anos, só se falava em “género” quando o assunto era gramática. Em se tratando de homens ou mulheres, a palavra era “sexo” — masculino ou feminino. Por isso, é desta forma que Maria (chamemos-lhe assim) recorda: “O meu sexo nunca era apropriado ao que queria fazer.” E cantarola a sua própria versão da canção Voar, de Tim e Rui Veloso: “Eu queria ser marinheira, o meu país não deixou.”

Antes de tentar ingressar na Escola Naval, ainda pensou ser nadadora-salvadora. Tinha tudo: boa preparação física, aulas de natação, curso de primeiros socorros da Cruz Vermelha, paixão pelo mar e vontade de ser útil ao mundo.

Tudo, tudo, não. “Só me falta o pirilau, não é?”, recorda, bem-disposta, ao repetir o que disse então na Capitania do Porto onde quis candidatar-se. E não esquece as caras dos marujos que a atenderam, entre o embaraçado e o divertido, pelo atrevimento… da rapariga. Tinha 16 anos.

O mais parecido que conseguiu naquele Verão foi ocupar-se de um posto de primeiros socorros — numa praia. “Não os ajudei no mar, salvei-os em terra.”

Antes ainda dos 18 anos, finalizado o ensino secundário, a vontade era de ingressar na Escola Naval. Tinha tudo: autorização dos pais, nota de candidatura, aprovação nas disciplinas exigidas, boa preparação física.

Tudo, tudo, não: continuava a faltar-lhe o… tal.

Outra possibilidade: Oceanografia (no Algarve ou nos Açores). Aí já não foi o “sexo” a impedir um possível futuro, mas o país continuou a travá-la. As bolsas para estudar longe de casa e o apoio para equipamento não eram suficientes. Mudou de rumo.

Mas Maria quer que neste 8 de Março se fale de mulheres e das várias limitações por o serem, não apenas as profissionais. E aí tem a história de outra Maria (chamemos-lhe também assim), a mãe.

Ainda hoje não consegue aceitar que o pai a impedisse de se despedir da irmã que se sabia que ia morrer. Tinha cancro da mama e estava em Londres a tentar o que então era possível para minimizar o sofrimento. Na altura, as mulheres casadas só podiam sair do país com autorização dos maridos. E ele não autorizou. “Não foi assim há tanto tempo.” Maria-mãe perdoou-lhe, Maria-filha, não.

Um outro episódio, comum a tantas mulheres portuguesas, fá-la ironizar sobre o seu próprio nascimento: “Posso dizer, em sentido literal, que nasci graças a Deus.” A recusa de um médico católico em receitar contraceptivos, mesmo a quem já tinha muitos filhos, permitiu-lhe vir ao mundo. E Maria-filha foi o décimo rebento do casal. “Não foi assim há tanto tempo.”

Muitas histórias de perdas se poderiam contar, mas façamos por nos concentrar nos ganhos, ainda que não generalizados e muito menos universais. Hoje e aqui, as filhas e netas de Maria já podem estudar o que quiserem, não precisam de autorização de quem quer que seja para viajar e só têm filhos se lhes apetecer.

“Encontrei outro caminho e fiquei bem”, diz Maria-filha sobre o que fez da vida e o que a vida fez dela. No entanto, sempre que se cruza nas estradas com as placas que assinalam “Outros destinos”, tem vontade de as seguir. Tem a certeza de que iria dar ao mar.


Texto recuperado do Dia da Mulher em 2017. Ainda vale.

Sugerir correcção
Comentar