A AD, a APU, a ADN e o analfabetismo
A minha avó pegou na bandeira, foi entregá-la e furiosa disse que “os ‘comunas’ tinham inventado a APU só para confundir o povo”. 45 anos depois, o povo, mesmo o mais bem formado, continua confundido.
Domingo passado, à porta da escola, está um grupo ao portão, à espera dos amigos que foram votar antecipadamente. Sai o jovem médico de família da terra. Aproxima-se alvoroçado: “Vocês votaram bem? Têm a certeza de que votaram bem? O que é aquela coisa… ADN… por pouco não pus lá a cruz!”
Os amigos gozam com ele e atropelam-se nas perguntas. “Aonde é que tens andado?”, “Não acompanhaste a campanha?”, ”Não viste o Ricardo [Araújo Pereira, no programa Isto é Gozar com quem Trabalha]?”, “Mas nem sequer viste imagens do comício em que o Montenegro explicou isso?”, “Mas tu não tens redes sociais?”.
Desconfortável, lá se vai rindo e respondendo que não, não tem tempo para políticos. “Trabalho, meus amigos, muito trabalho.” Pouco a pouco, despedem-se e cada um vai para seu lado, com o dever cumprido.
Se até àquele dia, pensei que a preocupação da AD com o ADN era fictícia, de repente, tornou-se real e, talvez, muitos que queiram dar o seu voto à Aliança Democrática, possam acabar por fazer a cruz à frente da Alternativa Democrática Nacional, um pequeno partido conservador. Porquê? Não sabem ler? Estão desatentos? É a iliteracia de que padecemos a funcionar?
Recuei até 1979, às eleições legislativas onde Francisco Sá Carneiro (PSD), Freitas do Amaral (CDS) e Gonçalo Ribeiro Telles (PPM) se apresentaram numa coligação, a Aliança Democrática (AD). Então, a política vivia-se com outro fulgor e a casa dos meus avós encheu-se de bandeiras da AD e do CDS, que eram acenadas às janelas e levadas aos comícios.
As bandeiras eram dadas (ou vendidas?) na rua e, um dia, a criada mais velha (lamento, mas 25 de Abril não aboliu a criadagem em casa dos meus avós, embora o pessoal tenha conquistado o direito ao descanso semanal, a descontos e a subsídios de férias e de Natal) chegou a casa com uma bandeira da Aliança Povo Unido (APU), a coligação que juntava o PCP, MDP/CDE e a Frente Socialista Popular.
Escandalizada, a minha avó perguntou o que fazia a mulher com aquela bandeira na mão, se sabia o que era. “É a bandeira da AD, minha senhora!”, disse confiante, mostrando-lhe o “A”, orgulhosa. Ela não sabia ler, mas sabia qual era a primeira letra do abecedário.
A mulher foi instada a voltar à rua para devolver a bandeira. Envergonhada, disse que não o faria e, num rompante, a minha avó pegou na bandeira, saiu à rua, foi entregá-la e furiosa disse aos militantes que “os ‘comunas’ tinham inventado a APU só para confundir o povo”. Parece que 45 anos depois, o povo, mesmo o mais bem formado, continua a confundir-se com o abecedário.
Nas semanas seguintes, a minha avó andou a doutrinar as criadas e a mulher-a-dias — um total de três pessoas, três votos úteis. Eram obrigadas a ver os tempos de antena – que eram comentados sem qualquer isenção, tal e qual como os comentadores da SIC Notícias.
Nas horas vagas, a minha avó juntava os panfletos que simulavam os boletins de voto e mostrava que a “AD” era diferente da “APU” — "duas letras, três letras". Sentada à mesa da cozinha, ensinava a mais velha a pegar na caneta e a fazer a cruz no interior do quadrado. “Não pode ser ao lado, não pode ser em cima, nem em baixo, é dentro do quadrado.” Depois do lanche, a minha avó ainda desenhava os símbolos dos três partidos da coligação para que não restassem quaisquer dúvidas.
No dia das eleições, saíram todos de casa, os senhores e as criadas. Todos muito bem vestidos, porque ir votar era mais solene do que ir à missa. Na mão de cada uma delas, a minha avó pôs uma tirinha de papel com o desenho e uma última recomendação: “É dentro do quadradinho.”
Provavelmente nenhuma se enganou, mas gosto de pensar que, pelo menos a mais nova votou APU. Afinal, tinha a 4.ª classe, reivindicava sempre os seus direitos e foi ela quem me ensinou: “Uma gaivota voava, voava, asas de vento, coração de mar. Como ela somos livres, somos livres de voar”.