O António-Pedro
“Tornou-se o meu grande confidente: muitos seriam os momentos, ao longo da minha vida, em que a sua opinião foi determinante”, recorda agora a socióloga.
No Verão de 1968, terminava o meu Curso de Filosofia. Nada aprendera, mas fizera dois amigos, o José Medeiros Ferreira, que a meio emigrara para Genebra, e o Vasco Pulido Valente. Durante esse período, apareciam muitos amigos em casa deste. Tocavam à campainha, entravam sem cerimónia e ficavam por ali, dias sem fim, a dormir. Foi assim que conheci o António-Pedro Vasconcelos, o João Cutileiro e o João César Monteiro. Subitamente, vi-me entre gente diferente, a maior parte dos quais artistas de esquerda. Embora eu nada percebesse de política, decidira que, tal como eles, não pertencia à "situação".
O meu encontro com o António-Pedro poderia ter desembocado numa paixão, mas, com aqueles caracóis desarrumados, aqueles olhos cintilantes e aquele corpo adolescente, era de tal forma leve que me dava a sensação de que, à primeira rabanada de vento, desapareceria. Quando combinava jantar com ele, chegava sempre atrasado, apresentando explicações extraordinárias. Nunca se queixava, nunca se angustiava, nunca se preocupava.
Quando o conheci, já ele decidira ser realizador de cinema, pelo que abandonara o curso de Direito, que o pai lhe tinha imposto. À época, apenas tinha feito meia dúzia de spots publicitários, mas nunca duvidou que o filme que estava a planear, Perdido por Cem..., acabaria por receber o subsídio necessário à sua concretização.
Não tinha dinheiro, o que jamais o impediu de ter luxos. Um dia, apareceu-me, em casa, de táxi, para me pedir 20$00 emprestados. Quando lhe fiz notar que metade da verba iria para o pagamento do carro, que lá fora o aguardava, continuou a falar. Na sua opinião, o dinheiro não tinha importância. Só ganhou algum juízo quando casou com uma mulher, a Teresa Schmidt, que eu aprendi a admirar.
O António-Pedro era prodigiosamente talentoso. Desenhava com proficiência, escrevia uma prosa impecável e os seus guiões eram românticos. Estivera em Paris, com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, facto que, a partir de certa altura, gerou controvérsia entre ele e os amigos – como eu – mais ligados à tradição anglo-saxónica. Lia os Cahiers du Cinéma, adorava os filmes do Truffaut e amava perdidamente Stendhal. O António-Pedro tornou-se o meu grande confidente: muitos seriam os momentos, ao longo da minha vida, em que a sua opinião foi determinante.
Em 1971, eu partia para Oxford, mas a nossa relação não se quebrou. Escrevíamo-nos muito, o que se manteve até hoje. Não tenho tempo para ir agora em busca das suas cartas em papel, mas verifiquei que, no computador comprado em 2005, estão 1415 emails. Passávamos todos os Ano Novo com amigos em casa da Maria João e do João Paulo, na Azaruja. Enfim, crescemos juntos. Lembro-me do dia longínquo em que "acampámos, inda o sol se via;/ E houve talhadas de melão, damascos/ E pão-de-ló molhado em malvasia". Nunca esquecerei Cesário Verde nem a forma como ele consolidou a nossa amizade.