Morreu António-Pedro Vasconcelos, o cineasta que acreditava no grande público
Defensor de um cinema para o grande público, voz activa em vários debates do Portugal democrático, a ele se devem muitos êxitos de bilheteira e algumas obras-primas. Completaria 85 anos no domingo.
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O realizador António-Pedro Vasconcelos morreu na noite de terça-feira no Hospital da Luz, em Lisboa, a poucos dias de completar o seu 85.º aniversário. Interveniente activo em muitos dos debates que marcaram o Portugal democrático, polemista ocasional, benfiquista fervoroso — estatuto que o familiarizou junto do grande público da televisão —, a dedicação a essas tantas causas paralelas, da campanha presidencial de Mário Soares à política cultural e à luta contra a privatização da TAP, nunca obscureceu a sua paixão pelo cinema. Deve-se-lhe um dos êxitos de crítica e de bilheteira mais significativos do cinema alguma vez feito em Portugal, O Lugar do Morto (1984), a par de obras de assinalável impacto comercial como Jaime (1999) ou Call Girl (2007). Iniciada antes do 25 de Abril, a sua filmografia acabou porém por resumir-se a 12 longas-metragens de ficção e um par de documentários.
"Cada ano, cada mês, cada dia dessa vida extraordinária que passou ao nosso lado fez de nós as pessoas mais felizes do mundo. E, certamente, também a muitos outros, graças ao seu trabalho, ao seu talento, às suas inúmeras lutas e incontáveis paixões", sublinha a família do realizador no comunicado que esta manhã enviou às redacções. "Hoje, mais do que nunca, temos a certeza de que o nosso A-PV, que tanto lutou para que todos fôssemos mais justos, mais correctos, mais conscientes, sempre tão sérios e dignos como ele, será sempre um Imortal. Sabemos bem a sorte que tivemos. Viveremos sempre cheios de orgulho."
Nascido em Leiria a 10 de Março de 1939, A-PV, petit nom que se tornou senha para os amigos, fez parte da “segunda geração” do Cinema Novo, a par de Alberto Seixas Santos (1936-2016), João César Monteiro (1939-2003) ou José Fonseca e Costa (1933-2015). Numa longa conversa com o PÚBLICO em 2018, a propósito da retrospectiva integral que a Cinemateca Portuguesa então lhe dedicou, lamentava que essa sua geração nunca tivesse cumprido verdadeiramente o seu potencial. Falava, nessa entrevista, das diferenças que já nesse final dos anos 1960 se cavavam dentro da vaga de realizadores que surgiu após a vanguarda de António da Cunha Telles, Fernando Lopes, Paulo Rocha ou Manuel Faria de Almeida. O seu grupo era o “da pastelaria São Remo”, a que pertenciam também o argumentista Carlos Saboga, Seixas Santos e César Monteiro.
Ficou, aliás, célebre a sua amizade de longa data com o truculento João César Monteiro e o apoio incondicional que sempre dedicou ao autor de Recordações da Casa Amarela, apesar de ser um crítico assumido daquilo que considerava uma deriva da produção portuguesa para o campo do cinema de autor, depois do 25 de Abril. Considerava-o, a esse cinema, desligado da realidade nacional — ao contrário do seu.
“O meu cinema nunca foi desligado da realidade”, dizia na já citada entrevista de 2018. O que me interessa é a ficção, e o papel que a ficção tem nas sociedades e nas civilizações. Sou incapaz de filmar uma realidade sem tentar percebê-la.”
Estudante de Direito, curso que nunca terminou, António-Pedro Vasconcelos aproximou-se da Sétima Arte por via da crítica, “prolongamento de uma paixão absolutamente louca pela descoberta do cinema”, que praticou nos jornais Diário de Notícias e República e nas revistas Imagem, O Tempo e o Modo, Colóquio ou Cinéfilo. No início dos anos 1960, tornava-se bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e foi estudar cinema na Sorbonne, em Paris. Aí fez a sua verdadeira “aprendizagem” cinematográfica, ao lado de Alberto Seixas Santos (1936-2016), assistindo às sessões da Cinemateca Francesa e vendo em primeira mão os filmes da Nouvelle Vague que tanto inspiraram a sua geração.
Realizou as suas primeiras curtas-metragens institucionais em finais dessa década, vindo depois a ser um dos fundadores do Centro Português de Cinema (CPC), estrutura apoiada pela Gulbenkian que procurou dar novo ímpeto à produção cinematográfica portuguesa, financiando um grupo de cineastas com “urgência de fazer cinema”. Deste grupo, para além dos seus camaradas da São Remo, faziam parte “jovens” como José Fonseca e Costa, Fernando Matos Silva e Alfredo Tropa e “veteranos” como António de Macedo, Artur Ramos ou José Ernesto de Sousa.
Foi no âmbito do CPC que se estreou na longa-metragem em 1973 com Perdido por Cem…, seguindo-se-lhe os dois documentários sobre a emigração portuguesa: Adeus, Até ao Meu Regresso (1974) e EmigrAntes… e Depois? (1976). Só regressaria à ficção em 1980, com Oxalá, estreado no Festival de Veneza, um “ponto da situação” da sua geração que reflectia a influência da Nouvelle Vague e que obteria assinalável êxito comercial para a época (90 mil espectadores, segundo os dados do Instituto do Cinema e do Audiovisual). Juntamente com Perdido por Cem... e o posterior O Lugar do Morto, esse filme formaria uma trilogia de ficções muito pessoal, cujos protagonistas eram, nas suas palavras, “prolongamentos” da sua pessoa.
Por essa altura, A-PV começara já a afastar-se cinematograficamente da geração com a qual crescera. O sucesso de O Lugar do Morto, policial com Ana Zanatti e o jornalista Pedro Oliveira nos papéis principais, que obteve uns extraordinários 270 mil espectadores aquando da sua estreia em 1984, parecia prometer-lhe um novo fôlego; e o cineasta aproveitou de facto para visar mais alto, lançando-se a uma co-produção histórica com França e Espanha, ambientada na Lisboa do século XIX. Aqui d’El Rei! (1991), baseado numa ideia do historiador Vasco Pulido Valente (1941-2020), e com um elenco encabeçado pelos franceses Ludmila Mikael, Jean-Pierre Cassel e Arnaud Giovaninetti, não colheu, no entanto, os favores do público.
Quase em simultâneo, consciente das mudanças profundas, a nível global, da produção de cinema e televisão, e de que a economia da indústria já não se restringia à sala e à exibição televisiva mas começava a passar pelos formatos de home video, A-PV afasta-se durante largos anos da realização. Começa por ser coordenador do Secretariado Nacional para o Audiovisual entre 1991 e 1993 e será depois presidente do grupo de trabalho para o Livro Verde da Comissão Europeia sobre a indústria audiovisual. “Uma missão fundamental para fazer sair o cinema português da sua pequenez”, dizia ao PÚBLICO em 2018, pois “era preciso uma política integrada para o audiovisual” e “ajudar a internacionalizar o cinema português”. Aceitou estes cargos institucionais apesar de as suas posições políticas estarem em desacordo com o ideário dos governos com os quais trabalhou.
Regressará à realização em finais dos anos 1990, entrando então no seu período mais produtivo, e também mais popular, com uma série de filmes que definirá como inspirados pela realidade portuguesa sua contemporânea e pelo cinema clássico. A partir de Jaime, obra sobre o drama do trabalho infantil, inspirada em Elia Kazan e Vittorio de Sica com que alcança os 220 mil espectadores e obtém os Globos de Ouro da SIC para melhor filme e melhor realizador, António-Pedro Vasconcelos começa a filmar com uma regularidade que nunca até ali o caracterizara. E sempre com apreciável sucesso de bilheteira — tinha a “preocupação de antecipar a reacção do público”, tal como os grandes mestres da literatura, da ópera ou do cinema.
Ao longo das duas décadas seguintes, alinha Os Imortais (2003); Call Girl (2007), o seu segundo título mais visto de sempre, com 230 mil espectadores, e o Globo de Ouro SIC de melhor filme; A Bela e o Paparazzo (2010), que considerava o seu “filme mais perfeito”; Os Gatos Não Têm Vertigens (2014), prémios Sophia de melhor filme e melhor realizador, que definiu como uma variação sobre Umberto D e David Copperfield; Amor Impossível (2015), de novo prémio Sophia de melhor filme; e Parque Mayer (2018), com que bisou o Sophia de melhor realizador, “uma homenagem a Jean Renoir e à sua homenagem constante ao público”.
Apesar dos prémios e dos sucessos de bilheteira, mostrou-se sempre profundamente frustrado por nunca ter visto os seus filmes alcançarem o patamar de consagração e de circulação internacional do cinema de autor português. Defendia o direito à existência desta produção de matriz mais autoral, mas lutava contra o que considerava ser um viés estrutural do sistema de financiamento. Em 2010, dizia noutra entrevista ao PÚBLICO que “o cinema português é feito por indivíduos que o Estado decide que são cineastas e que fazem, na maior parte dos casos, um cinema autista, que não é escrutinado por ninguém”. Já então defendia a necessidade de “acabar com o sistema de apoios tal como existe hoje” e de reestruturar por completo o organismo ICA e a própria metodologia de financiamento em vigor.
A retrospectiva integral que Cinemateca Portuguesa lhe dedicou coincidiu, por ironia, com o Mundial de Futebol que nesse ano decorreu na Rússia — o desporto-rei foi uma das suas grandes paixões, tendo sido comentador nos jornais Record e O Independente e, arvorando as cores do Sport Lisboa e Benfica, no programa Trio de Ataque, da RTP, entre 2004 e 2010. Para além de inúmeras colunas de opinião sobre a sociedade civil — inclusive no PÚBLICO — publicou três livros: Porque é que as Mulheres Não Gostam de Futebol? (2001), recolha de crónicas publicadas na imprensa; Serviço Público Interesses Privados (2003), a sua contribuição para o debate à volta do serviço público de televisão; e Um Cineasta Condenado a Ser Livre — Diálogo com José Jorge Letria (2016).
Estreou em 2022 o seu último filme, KM 224, que marcou também a sua reconciliação com o produtor Paulo Branco, com quem fundara a V. O. Filmes em finais dos anos 1970. O cineasta preparava neste momento uma adaptação de Lavagante, de José Cardoso Pires, e um documentário sobre os bastidores do 25 de Abril para a RTP. Deixa dois filhos: a directora de casting Patrícia Vasconcelos e o coleccionador Pedro Jaime Vasconcelos, do seu primeiro casamento com Maria Helena Guerra.
O velório de António-Pedro Vasconcelos terá lugar esta quinta-feira na Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa, das 15h às 22h; o funeral segue às 13h30 de sexta-feira para o Cemitério dos Prazeres.