Tudo o que é importante acontece na cama

Imagino sempre o que teria sido dos grandes confrontos da Humanidade, se as disputas entre líderes mundiais tivessem sido resolvidas na cama, em vez de nos campos de batalha.

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Rita Lagarto
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Tudo o que é importante acontece na cama. O que nos transforma, o que nos abranda, o que nos despe, que nos suspende, que nos arrebata, que nos desalinha, que nos reconcilia. Tudo o que nos pacifica e adormece, absolutamente inconscientes, frágeis, absolutamente despojados, todo o sono e todo o sonho, que nos arrasta para dentro-de-nós-fora-do-tempo, para fora de nós-dentro-do-corpo. Aquilo que nos desperta, nos inflama, nos apaixona, nos acende, que nos dá potência, que nos atira para dentro-do-outro-fora-de-nós. Tudo o que nos reduz àquilo que somos e parece tão pouco, às vezes nada, às vezes tudo — a morrer e a renascer mais uma noite.

Perdidos nos lençóis, de olhos fechados, submersos na pulsação lenta do nosso sono nu, somos o mais próximo de sermos nós mesmos, enquanto existimos dentro dos pesadelos que não podemos contar porque são reais e sobrevivem debaixo da pele, ou respiramos de olhos abertos no escuro, mergulhados nas nossas insónias, como um astronauta perdido no denso espaço de uma Nebulosa: o campo interestelar do Cosmos onde nascem as galáxias. Só nós nesse espaço singular, que podemos habitar, só nosso, onde nada, nem mesmo a luz, pode escapar… prontos a confundir o corpo com o Universo.

Ascenderia a cama a Altar, não fosse ela ser tão indecorosa, tão propícia ao profano e inversa ao pudor… Ascenderia a Ciência, se não fosse tão inexata, tão falível, tão subjetiva e inconstante. Ascenderia a Palco não fosse tão privada, tão absolutamente íntima, tão cheia de territórios invisíveis, tão obscena (na Tragédia Clássica, ob-scaenam, do latim, era aquilo que não se via, que ficava fora da cena: as “obscenidades”, como os assassínios ou duelos sangrentos, eram poupadas aos olhos dos espectadores).

Imagino sempre o que teria sido dos grandes confrontos da Humanidade, se as disputas entre líderes mundiais tivessem sido resolvidas na cama, em vez de nos campos de batalha. O que seria do Teatro de Guerra e da Política internacional, se em vez de cimeiras se decretassem encontros debaixo de lençóis? Como agiriam Truman e Estaline, Kennedy e Fidel, quando se vissem subitamente forçados à intimidade de um diálogo em pijama, ou melhor de boxers (ou slips!), dentro de uma cama com os seus opositores.

Que antagonismo heróico e autoritário sobraria de uma disputa verbal de mamilos à mostra, sinais peludos à vista, umbigo ao léu? Que hostilidade poderia sobrar quando se apercebessem semelhantes naqueles refegos de barriga ternurentos que a roupa esconde e espreme, e que só os lençóis da cama (e as avós que prezam a nossa gordura subcutânea) acolhem sem julgamento? Frente a frente, na almofada! O que aconteceria quando os pés descalços de Bush e Saddam, se tocassem? “Desculpe, o de baixo é meu!” Assim, vulneráveis, despidos de medalhas, bravuras, fardas, distinções, exércitos e soberba. Só eles, íntimos e horizontais, com o ego em latitude, no algodão frio dos lençóis esticados, e com uma botija de água quente para partilhar. “Agora conversem meninos!” Que duelo…

Sempre que chega o momento da senhora, que contrato para vir cá a casa fazer a limpeza, trocar os lençóis da minha cama, há uma ligeira altercação… Ela faz-se invariavelmente de desentendida: “A Ana quer que ponha as fronhas nas duas (!) almofadas? Vale a pena?” “Sim. Porquê?” “Já que a cama é para si, achei que não valia a pena estar a sujar as duas fronhas. Fazia a cama para um.” “Pode pôr para dois… Gosto de ter a cama sempre pronta. Como gosto de ter a mesa sempre posta…”, respondo, “… nunca se sabe quem pode aparecer para jantar”, remato irónica, enquanto ela fica a tentar decifrar se estou a falar a sério ou a brincar.

Sim. Tenho sempre a mesa posta e tenho sempre água na mesa, a antecipar a refeição. Tenho sempre a cama feita e tenho um copo de água ao lado da cama, a antecipar a noite. A prevenir a sede que provocam os sonhos compridos e extenuantes, ou as horas fatigantes em que o sono teima em não assentar… Para humedecer a secura da voz que rasga o silêncio da cama para te dizer as palavras que ficam fora de cena durante o dia. Para molhar a garganta ofegante, estreita demais para o peito em combustão, quando corpo que se expande como um sistema solar, profano, inverso ao pudor.

Tenho sempre o copo de água à mão (tal como o interruptor do candeeiro, e os óculos na mesinha de cabeceira) para me tranquilizar com um gole noturno, quando preciso de garantir que a realidade ainda está de pé e que o mundo não se entornou, sempre que acordo assustada na escuridão, depois de despertar do abismo, nas vezes em que já aterrei na cama, mas o corpo ainda ficou para trás, a vaguear no espaço sideral dormente e confuso.

Na cama o corpo confunde-se. Às escuras, sem luz nem óculos, confunde-se. Confundo o meu corpo com o corpo do sonho, o meu corpo com o corpo do outro, o corpo do outro comigo. Se o outro me agarra, se toma o meu corpo, desfaço-me sem querer, liquidifico-me, entorno-me… Corpo-copo. Na mão do outro. Escorro para dentro do outro. Corpo-água na boca do outro, que o engole — como uma refeição na mesa — pronta a ser sustento, eu, deitada na toalha branca, na cama posta para dois.

À mesa, o Amor serve-se empratado, na forma da comida que se prepara e se cozinha, que queima os lábios... “Cuidado ainda está quente…”, que se rasga com os talheres, num duelo entre a fome e a ternura. A faca que corta o Amor, os dentes que o trituram… A carne em sangue, no ponto... “Desculpa…Queimei-te?” Na cama, o Amor serve-se sobre os lençóis, queima os lábios, a carne, no ponto... Um duelo entre a fome e a ternura, em latitude… Que duelo.

Não consigo pensar quando tenho fome, e não consigo discutir se estiver deitada. Se for preciso argumentar com alguma qualidade, preciso de estar em posição vertical. Se o golpe argumentativo vier da lateral enquanto os meus cabelos ainda estão misturados com o amaciador da roupa nos lençóis, enquanto a minha pele ainda está a decidir a qual corpo pertence, não consigo aceder a mim. A minha cabeça fica perdida numa Nebulosa difusa, os pensamentos escorrem para a almofada. Chego atrasada ao meu próprio combate.

“Desculpa… Queimei-te?” O tecido dos lençóis ainda está quente e deste um pulo para te afastares de mim, para não te queimares, que ainda estou a ferver. Assombrado pela hipótese de confundires o teu corpo no meu, aterrorizado pela ideia de desapareceres se te aproximares demais. Confuso… A lutar entre a fome e a ternura. Estás longe, no fundo da cama, no fundo do universo, como um corpo celeste a lutar entre permanecer matéria ou ser absorvido pela massa gigante da estrela...

Preparas-te para uma Guerra, e eu ainda a tentar decifrar se estás a falar a sério ou a brincar. Um duelo? Pensava que era uma festa, não estava preparada, vim sem armas... Sou só eu e o meu corpo. E o meu corpo é pouco, é quase nada, não vem apetrechado de munições. Só dois olhos, dois braços, púbis, ossos, tecidos… o costume... Sou só eu e o meu corpo nu. Atacas-me! Como numa Tragédia Grega. Ergo o tronco, zonza, ainda não recuperei o oxigénio. Estou despida! Preciso do meu fato de astronauta, se vamos mergulhar de cabeça para baixo, se vamos inverter tudo… Preciso pelo menos de um capacete se vamos arriscar mergulhar no “Ponto de Não Retorno” — a fronteira teórica ao redor de um Buraco Negro a partir da qual a força da gravidade é tão forte que, nada, nem mesmo a luz, pode escapar.

Vamos? É que não percebo nada de Astrofísica! Não percebo nada de Geopolítica… Não estava preparada para um duelo. É que se vamos encher a cama de sangue, se vamos sujar as fronhas, devíamos ao menos cobrir os lençóis, para não fazer nódoas. Devíamos cobrir o peito, a púbis, não se deve discutir assim tão sem roupa. Deixa-me só endireitar a coluna! É golpe baixo atacar um corpo deitado. Um corpo deitado já não tem para onde cair a seguir. Espera… Preciso dos óculos, se não deixo de saber onde estou, perco o meu corpo, e tu ainda estás um bocadinho misturado aqui na minha perna. Desferes um golpe, com os dentes. Trituras a minha carne. Não tenho faca. Não tenho garfo. Só tenho este copo de água. Não estava preparada…

Levantas-te. Queres sair. Do quarto. Da noite. Da vida — a minha, que ainda está presa nesse pedacinho de pele que pertence ao meu corpo e que arrastaste para fora da cama. Cuidado! Assim vai rasgar! (Mesmo que não se veja, mesmo que aconteça fora de cena.) Vai rasgar!

Tudo o que é importante acontece na cama. Tudo o que nos reduz àquilo que somos e parece tão pouco, às vezes nada. Às vezes… Tudo.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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