Depois de promover uma reviravolta na imagem dos vinhos da Quinta do Tamariz, este produtor da sub-região do Lima resolveu ver se havia matéria para perpetuar a história da propriedade num livro que também abordasse a relação daquele terroir com os Vinhos Verdes e a própria história da região. Assinado por António Barros Cardoso, o livro Quinta do Tamariz — Lugar de Vinhos com História levou quatro longos anos a saltar para o papel e tem cerca de 300 páginas. Foi apresentado, há dias, no Palacete Silva Monteiro, sede da Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes.
António Borges Vinagre, a quarta geração à frente de um negócio que foi sempre familiar, convidou o historiador e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto para coordenar uma investigação que tinha então como objectivo colocar em livro os cinco séculos de história de produção de vinho na propriedade adquirida por Delfim Vinagre, o seu avô, em 31 de Março de 1942. "Um percurso de excelência", como notou a presidente da CVRVV, Dora Simões. E uma quinta que os documentos consultados por Barros Cardoso colocam "entre as propriedades vitivinícolas portuguesas de referência, pelo menos, desde meados do século XVI", sublinhou o autor.
O livro nasce desse estudo histórico e do "convívio" que permitiu nasceu também "uma relação de amizade" entre produtor e autor, comentou este. Custa 40 euros (preço indicativo; à venda em Barcelos, na loja da Quinta do Tamariz — que também envia por correio —, na livraria Cecílio e na Folklore Store; em Braga, na livraria Centésima Página e na Loja Gourmet 5 Sentidos; no Porto, na livraria Esquina; e em Quarteira, na Garrafeira Rolha a Rolha), está editado em três línguas (mil exemplares, em português, inglês e francês), a pensar nos turistas que visitam a quinta, e revela como a vinha e o vinho naquelas terras de Barcelos já apareciam no Tombo da Comenda de Fonte Coberta, de 10 de Outubro de 1548.
Tem quase 500 anos, portanto, a primeira referência à produção de vinho no lugar a que hoje chamam Tamariz, mas a propriedade já surgia antes, em documentos oficiais, como sendo local de passagem dos peregrinos que rumavam a Santiago de Compostela, explicou Barros Cardoso.
A tal Comenda de Fonte Coberta foi dada a um Miguel de Castanhoso, explicou António Barros Cardoso na apresentação da publicação na Casa do Vinho Verde. Segundo o investigador e presidente da Associação Portuguesa de História da Vinha e do Vinho, o tombo das propriedades referia que a quinta, concedida a Castanhoso pela Coroa portuguesa por serviços prestados além-mar — viajou até ao território que hoje é a Etiópia e trouxe novas sobre aquelas terras e sobre como se vivia ali —, "tinha uma adega" e que "junto dela havia uma vinha, cujo amanho empregava 75 homens de cava". Por aqui se percebe também a importância da quinta, uma vez que à época, notou o autor, a generalidade das quintas nem dez homens tinha para cavar e trabalhar a terra.
Francisco Furtado de Castro do Rio de Mendonça, Visconde de Barbacena, foi o último comendador a administrar a quinta, que depois de 1834 teve vários proprietários. No início do século XX, em 1928, o bisavô do actual gestor, António Nunes Borges — um dos fundadores do Banco Borges & Irmão, então já com 96 anos —, adquiriu ali a Quinta da Portela, a que mais tarde junta a Quinta de Cantim. Entre os anos 1930 e 1940, a filha do banqueiro, Lúcia Brenha Borges e o marido, Delfim Vinagre, acrescentaram várias parcelas à propriedade, que passou a chamar-se Quinta do Tamariz.
O livro dá conta de outra 'vida' da quinta vitivinícola, enquanto um dos mais antigos viveiros de plantas do Norte do país. De facto, a riqueza de Tamariz não está só na vinha, está também num jardim com três centenas de plantas, de que António Borges Vinagre cuidou toda a vida, incluindo as camélias que gosta de 'postar' no Facebook da quinta, e na considerável área de bosque que esta tem.
Uma visão antes do seu tempo
A quinta que Borges Vinagre conhece desde que é gente e administra desde 1981 é há vários anos tida no sector e na região como um produtor de verdes mais sérios — há mais de três décadas que não adiciona gás ou doçura aos seus vinhos —, como uma casa que inova na adega e na vinha — foi uma das primeiras quintas a trocar o sistema de condução das videiras em cruzeta pelo cordão — e como um negócio com um dinamismo singular e uma visão à frente dos tempos. Que se mantêm ainda hoje, apesar da provecta idade do seu gestor.
Apesar de a sua produção anual estar limitada às 130.000 garrafas — é essa a capacidade máxima "num ano bom", ou seja, não estamos a falar de nenhum gigante —, um sem-número de feitos granjearam à Quinta do Tamariz um respeito e um reconhecimento como poucos conseguem alcançar. Da decisão, já lá vão mais de dez anos, de passar a guardar algumas garrafas de cada vindima para vender mais tarde, contrariando a ideia feita de que o Vinho Verde só se bebe no ano de colheita, à aposta temporã e continuada no enoturismo (a casa foi recentemente restaurada), passando pela escolha de uma reputada e premiada designer para recriar a imagem do Tamariz. Foi, aliás, desse trabalho de Rita Rivotti, em 2017 (o mesmo ano em que Borges Vinagre decidiu deixar de vender os seus vinhos em super e hipermercados), que nasceu a ideia do livro agora apresentado.
"Fizemos um estudo para encontrar a garrafa certa para o nosso vinho e para mudar a sua imagem e, na sequência [desse trabalho], achámos que fazia sentido saber um pouco mais sobre a história da quinta. Não sabíamos se existia, se não existia. O professor Barros Cardoso fez uma leitura preliminar de alguns documentos e achou que havia matéria para avançarmos", explicou ao PÚBLICO o produtor, que é economista de formação e já tinha um vasto acervo de documentação histórica, embora esta estivesse desorganizada.
"Fazer vinhos bons"
Era uma preocupação do produtor perpetuar a história da quinta ("nunca pensámos que houvesse tanta informação"), bem como descobrir e partilhar a relação daquela com a região demarcada dos Vinhos Verdes. "Queremos uma região valorizada e os livros ajudam a valorizar a história da região", nota, observando que durante muito tempo as quintas tinham "vergonha da sua história", vergonha do vinho verde com gás. "Não temos de ter vergonha. Foi um período histórico [da região]. Ainda existem vinhos com gás, [de resto] há gostos para tudo e ainda bem que assim é. E esses vinhos podem coexistir com os outros e não há problema algum."
No caso do Tamariz, a génese de um perfil mais moderno tem origem no já longínquo ano de 1947 e num infortúnio que permitiu perceber o potencial dos vinhos ali produzidos. Aquela colheita era para ter ido para o Brasil, mas aconteceu "uma confusão" qualquer e o vinho já não atravessou o Atlântico. Ficou vários anos esquecido na adega, até que chegou à quinta um tal de Amândio Galhano e o engenheiro agrónomo, figura incontornável na história do Vinho Verde, o provou e o elogiou.
Já o avô de António Borges Vinagre — que casara com Lúcia Borges e encetara um forte desenvolvimento vitivinícola nas terras herdadas pela esposa em São Miguel da Carreira, em Barcelos — "queria fazer bons vinhos", conta o proprietário da Quinta do Tamariz. Prova disso são os vários prémios obtidos "em todos os concursos nacionais de vinhos engarrafados da Junta Nacional do Vinho" entre 1951 e 1973, conta. "O meu avô, Delfim Vinagre, tinha então a quinta de cima — a Quinta da Portela — desde 1928. E em 1942 comprou a Quinta do Tamariz."
A quinta, que já teve outro nome (assim como a empresa que a gere e onde Borges Vinagre partilha responsabilidades com a mulher Maria Francisca), tem 16 hectares de vinha e não só deixou de "saldar vinho" (em 2013, António Borges Vinagre acabou com a prática e passou a guardar o vinho que, chegados à vindima seguinte, ninguém queria comprar), como também se dá ao luxo de "seleccionar" uvas. "Fico com o que me interessa e vendo o resto."
A primeira reestruturação da vinha aconteceu logo no segundo ano de António Borges Vinagre à frente dos destinos da quinta. E em 1982 o gestor já quis apostar naquela que é hoje a casta emblemática da sub-região do Lima. O Loureiro representa desde então 70% do encepamento e o primeiro varietal feito com essas uvas é de 1986 — esse vinho foi também o primeiro 100% Loureiro da região. Na quinta, há também Arinto (15%), Alvarinho (10%), Vinhão e Touriga Nacional (5%, no conjunto das duas). E, estando focada nos brancos de qualidade e de guarda, Tamariz produz também um vinho tinto, um rosé, espumantes, aguardentes velhas e até pét-nat.
Nos primeiros anos, os Borges Vinagre tiveram a ajuda preciosa de Amândio Galhano, "um grande enólogo", que, entre outras coisas, "lançou as adegas cooperativas" na região, recorda António Borges Vinagre. Na enologia, seguir-se-iam outros nomes, até os caminhos do Tamariz se cruzarem com Jorge Sousa Pinto, enólogo da casa há uns 20 anos e quem conduziu a prova especial por ocasião do lançamento do livro (Manuel Carvalho escreveu sobre esses vinhos).
Hoje em dia, já é normal, mesmo nos Vinhos Verdes, colocar os vinhos no mercado vários meses após a vindima. Um dos vinhos saídos em 2023 da Vinha de Cantim (a parcela de Loureiro mais antiga da Quinta do Tamariz) foi recentemente engarrafado e "vai ficar um ano em estágio" e o tinto da casa (100% Vinhão) "só será lançado em Outubro", partilha Borges Vinagre, que, de resto, faz questão de seguir tendências de consumo, bem como a evolução dos mercados internacionais.
"Exportamos 35% em valor — e, em volume, é mais ou menos a mesma coisa —, mas [essa fatia] vai crescer. Estamos a fazer um trabalho grande no mercado japonês e nos EUA." Uma trajectória a seguir, nas próximas estórias de uma casa com raízes que levam quase 500 anos de história.