Frases feitas e belezas imperfeitas: uma viagem pelos vales do Neiva e do Cávado
Boas mesas que oferecem mais do que apenas abundância, vinhos que contrariam preconceitos, negócios que são verdadeiros álbuns de família. Roteiro de cidade e campo pelos vales do Neiva e do Cávado.
Facilmente se diz, da boca para fora, que uma terra como Barcelos “dispensa apresentações”. A frase feita pretende ser, a um tempo, elogiosa e sucinta. No entanto, ganha o efeito contrário mal se põe os olhos pela primeira vez na cidade à beira-Cávado. Dificilmente haverá em Portugal quem nunca tenha ouvido falar dela, porém, vai-se a perceber e Barcelos precisa mesmo de apresentações.
A culpa – boa culpa, sublinhe-se – é do artesanato. Tanto do ubíquo galo que se tornou símbolo nacional, como do delicioso figurado, que facilmente poderia ascender ao mesmo pedestal de figura de proa de um país. E esses, sim, talvez dispensem grandes notas descritivas. Mas falta dar a descobrir o resto. Vamos às apresentações.
Desfiar o centro histórico de Barcelos
Diz outra frase batida que não há uma segunda oportunidade para uma boa primeira impressão. E também ela deve ser contestada, a bem do contexto: as entradas principais, pelo menos para quem chega guiado pelo Google Maps, não são sedutoras. Porém, quem dá por si em Barcelinhos, na margem sul do rio, de olhos num postal que abrange o Cávado, a ponte antiga, a Casa da Azenha e, acima, a ruína do paço dos Condes de Barcelos, a igreja de Santa Maria Maior e o torreão do Solar dos Pinheiros, rapidamente esquece o primeiro impacto. Por aqui se começa a desfiar Barcelos.
É preciso subir um pouco, nada que desmereça o esforço. Pela lateral do edifício da Câmara, rapidamente se chega ao Largo do Apoio, pequeno, feito esplanada do Café Historial, como uma convidativa sala de visitas. Numa das esquinas, salta à vista a casa robusta de granito que, há seis séculos, foi morada de Nuno Álvares Pereira, também ele Conde de Barcelos. Hoje, anuncia o letreiro de uma imobiliária, está à venda – visitar o seu interior é um privilégio reservado a quem estiver interessado na compra de um T4 com pergaminhos no centro histórico.
Outro largo merece elogio pela preciosidade. É um pulo, rapidamente se chega lá percorrendo a Rua Direita, a agradável rua de montras e de passeio que ainda persiste em algumas cidades médias portuguesas – as boas, pelo menos. Descontando paragens gulosas pelo caminho (a Casa das Natas é tentadora), em coisa de três minutos se alcança o Largo José Novais. Está de cara lavada, finalmente destituído da sua função de parque de estacionamento e só lhe falta as esplanadas para se tornar postal de Barcelos. Em tendo-se a sorte de subir ao topo da Torre da Cadeia, que alberga o posto de turismo, a vista é recompensadora – e, escada acima, vai-se apreciando as peças de artesanato figurado em exposição. Além da vertente expositiva, o posto de turismo tem também uma grande montra destas peças coloridas que dão óptimas recordações do caminho.
Falemos de artesanato, sim, mas com um desvio. A Cobres Cunha fica junto ao Mercado Municipal e é outro tesouro que merece todas apresentações que se lhe possa dar. João Cunha está com 64 anos, a reforma à espreita, trabalha sozinho e não há ninguém para dar continuação ao trabalho que o seu avô, descendente de uma família de caldeireiros, iniciou em 1932. “Não tenhamos ilusões com a subsistência da profissão”, admite, reconciliado com a ideia de extinção do ofício. A sua oficina é, portanto, uma cápsula do tempo – há fotografias que documentam os 90 anos de vida da casa, vê-se João a trabalhar o cobre e a explicar o processo, e abre-se espaço na mala para os alambiques, as cataplanas, as formas de pudim abade de Priscos, as peças de bijuteria que estão à venda.
Negócios de família
Sérgio Sousa também deu seguimento ao negócio que herdou do pai. Há coisa de 50 anos, este regressava do Brasil, de São Paulo, onde tinha um casa de refeições e petiscos na Avenida Paulista. E chamava-se Paulo. Portanto, o nome da casa que abriu na chamada Rua da Palha (Rua do Bom Jesus da Cruz nos mapas) não oferece mistério. O Café Paulista é hoje uma instituição em Barcelos, com fama construída sobre um produto-estrela: as salsichas. Cozidas, mantidas em banho-maria numa cebolada picante e servidas num pãozinho. Também há panados – e aqui pedir “uma mista” significa panado com salsicha –, bacalhau frito e copos de vinho. De onde vem? “Da videira”, resposta pronta do outro lado do balcão. O humor de taberna também faz parte do encanto.
Mais coisa, menos coisa, pela altura em que abria o Paulista nascia também o Dom Carlos, outra casa decana de Barcelos, porém num segmento mais alto – como se atesta pelo parque automóvel à porta. Ou pela abundante garrafeira no interior, com mais de 400 referências e espalhada por todos os recantos. Começou por ser um café à beira da estrada, ganhou um talho na porta ao lado, e evoluiu para um restaurante que, meio século depois, é ponto de romaria na estrada que vai de Barcelos a Ponte de Lima. A reserva, diga-se já, é mais do que recomendada.
O perfil da casa evoluiu, mas a cozinha manteve-se no mesmo sítio. E Amâncio Oliveira, que ali cresceu e acabou por assumir o leme do negócio dos pais, é o primeiro a admiti-lo: “É cozinha da mãe, comidinhas boas, sem condimentos a mais.” Não fala de uma mãe no sentido figurado, mas da sua, que antes de pendurar a jaleca ensinou o actual cozinheiro.
Aqui vem-se pela cozinha regional, de matriz caseira, rotinada para a consistência pelos anos de rodagem. O galo, embaixador regional, é presença assídua, assim como a costela mendinha, o bacalhau na caçarola, o cabritinho no forno. O peixe de mar, o presunto 5 Jotas, as alheiras feitas na casa e a carne de vaca de maturação própria são outros trunfos que Amâncio se orgulha de partilhar. E não se pode esquecer o polvo de Castelo de Neiva no forno, tenro como raramente se encontra. Importa, sobretudo, ter em mente que o Dom Carlos é um sítio para se ir com tempo – tanto melhor, se der para finalizar com a mousse de chocolate gelada. A pressa não leva a lado nenhum.
Uma elaborada simplicidade
A pressa, diz-se, é inimiga da perfeição. A família Rosa, contudo, esforça-se pela ausência de ambas. A bandeira Slow Living dita o ritmo no Terra Rosa Countryhouse & Vineyards, e a beleza é procurada antes nas coisas imperfeitas – na textura do mobiliário com marcas da idade, na ferrugem de uma velha chaminé que ganhou função decorativa, na casa que destoa do conjunto porque, descobriu-se nas obras, tinha uma cor original distinta.
A quinta de 70 hectares está na família Rosa há três gerações, desde que o pai de Francisco Rosa (e avô de Eliana) a comprou aos viscondes de Venade. Na altura, foi aproveitada para várias culturas, incluindo lúpulo, mas Francisco, ao tomar as rédeas, vocacionou-a totalmente para o vinho. Não têm produção própria, por uma questão de prioridades – preferem criar as uvas, de loureiro na sua maioria, e enviá-las para a Adega Cooperativa de Ponte de Lima. E focar-se na outra metade deste empreendimento de pai e filha: a hospitalidade.
A vertente de turismo rural de charme ainda não perdeu o cheiro de novo, aberta que está há menos de um ano. Para já, são sete quartos, na antiga casa dos caseiros, mas a quinta tem vários conjuntos de edificado por onde expandir. Há o solar dos viscondes, no ponto cimeiro da quinta, uma corte de alfaias agrícolas com capela contígua, dois conjuntos de casas no meio das vinhas e um par de moinhos à beira do rio Neiva, que delimita a propriedade. Depois, há a tal casa de cor diferente, que será espaço de eventos, um espigueiro, vários tanques com água de nascente, oliveiras centenárias, um pomar de laranjeiras junto à piscina. Não lhe faltam recantos para apreciar a falta de pressa que se traz para um sítio destes.
As manhãs, que só são silenciosas para quem não abre os janelões do quarto, têm por banda sonora muita passarada e o correr da água. E são brindadas com o pequeno-almoço que se espera de um sítio assim: sumo de laranjas da quinta, compotas e bolo caseiros, e um viciante pão entrançado, algures entre a regueifa e o croissant, proveniente da vizinha Confeitaria Lopes. Tudo coisas simples. A mesma simplicidade que emana do mobiliário vivido, criteriosamente escolhido por Eliana Rosa – que planeia retomar aqui a loja de decoração que teve em Viana –, do tom sereno das madeiras dos quartos, também com a assinatura da anfitriã, ou da suavidade dos lençóis de algodão egípcio. Tudo coisas simples. Uma simplicidade que dá muito trabalho.
O altar para um bacalhau de excepção
Por recomendação de Eliana Rosa, espreitamos a Taberna Afonso, em Poiares. Uma casa que também tem nessa simplicidade trabalhosa parte da receita de sucesso. Aqui, vem-se para comer bacalhau. Era isso que a casa vendia quando pertencia ao tal Afonso – então, apenas como mercearia – e foi isso que Álvaro Gonçalves assumiu como vocação quando a transformou em taberna, primeiro no sentido literal, depois numa casa que foi crescendo até se tornar restaurante de pleno direito. Álvaro dá prioridade ao bacalhau das Ilhas Faroe, “mais suculento”, produzido em menor quantidade, de um fornecedor que o cura segundo as suas especificações e garante “um padrão de qualidade constante”.
Na mesa ao lado, um grupo de amigos assina por baixo: “É extraordinário.” Contam que vieram do Porto de propósito para este bacalhau. Não se chega a este patamar sem consistência. Antes do prato principal, vêm para a mesa os aproveitamentos de tudo o que não é posta: aparas incorporadas na manteiga do couvert, pontas mais finas panadas em panko, sames servidos numa feijoada rica. Chegado o prato principal, desfazem-se eventuais dúvidas. Posta grande, assada em forno a lenha de eucalipto e a lascar como se espera – aquilo que justifica a tal viagem propositada.
A carta cabe numa folha A5, mas inclui ainda algumas carnes minhotas e uma secção de sobremesas onde o chef Cláudio, filho de Álvaro, dá largas à imaginação. A carta de vinhos, essa ronda as cem referências, incluindo um loureiro e um vinhão de produção própria.
Do vale do Neiva ao vale do Cávado
À saída do Terra Rosa, tomando a N308 no sentido oposto, em breves minutos se alcança a Quinta do Montinho. Uma quinta de espírito boutique, disposta em torno de um solar do século XVIII cujo terraço-jardim, de olhos no vale do Neiva, providencia provas de vinhos à sombra de duas magníficas tílias em dias de sol. Enquanto a Primavera se mostra chuvosa, é na sala de provas, inserida no edifício da nova adega, que se toma o pulso à produção da Quinta do Montinho.
Nestas vinhas, que palpitam de vida – tal como o bosque de autóctones que lhes está próximo –, avistam-se aves de rapina, salamandras e tritões, raposas e o ocasional garrano. O enólogo Rui Oliveira, que “já era biólogo antes de ser enólogo”, entusiasma-se tanto a falar destes avistamentos como dos vinhos que faz – todos eles brancos, maioritariamente de loureiro e alvarinho (mas há também algum arinto e fernão pires nos talhões novos), todos eles frescura e aroma, graças à exposição norte/poente, à moderada influência do mar e à relativa altitude.
A quinta está a expandir-se, dos originais 4 hectares de vinha para o triplo, e com isso também a capacidade da adega aumentou, das 40 mil garrafas para as 150 mil. Volume não é, exactamente, a prioridade de Duarte Nuno Pinto, CEO de uma empresa de têxtil desportivo em Barcelos, que comprou a propriedade nos anos 1990. Move-o antes a paixão pelo seu vinho, e a continuação da longa tradição de família, documentada desde 1621, de serem proprietários agrícolas. É esse o ano inscrito nas “armas” da Quinta do Montinho.
Paulo Ramos também tem longa história de raízes para contar. Ele é já a 15.ª geração à frente da Quinta de Paços. Nos 9 hectares que tem nesta propriedade nos arredores de Barcelos, tal como noutros tantos que tem em Monção, sob o rótulo Casa do Capitão-Mor, produz vinhos que desafiam as convenções sobre aquilo que são os vinhos da região. Seja um arinto com 14% de álcool, seja o uso da curtimenta, seja um blend de alvarinho e loureiro que começou a fazer em 1996, desafiando quem lhe dizia que “essas castas não se misturam”.
Para cada vinho que apresenta, desdobra uma história de família. Abre um Loureiro Reserva enquanto conta a embirração do seu pai com a casta. Serve um alvarinho de 2020 e recorda, “O meu tio nunca nos deixava beber o alvarinho até passar um ano de ele ter sido colhido”. E assume, “Custa-me despedir dos vinhos quando são engarrafados”, em jeito de apresentação do sublime Alvarinho Sobre Lias, da Casa do Capitão-Mor. A inquietação, essa nunca o larga: “Será que engarrafei na altura certa?” A prova no salão do solar quatrocentista da Quinta de Paços, rodeada de retratos de várias gerações de antepassados de Paulo Ramos, acaba por ser como folhear um álbum de família.
Um caminho de ousadia
A ousadia também faz parte do percurso de António Vinagre. Encontramo-lo na Quinta de Tamariz, onde produz vinhos elegantes e enxutos: “Abolimos o gás, não gosto de meter coisas no vinho”, comenta, em jeito introdutório. A sua história com a quinta é relativamente recente, mas também tem muito para contar. O avô comprou-a em 1942. Em 1956, pavimentou o caminho que o neto hoje trilha: “Ele tinha uma encomenda de colheita 1947 que não chegou a seguir e foi ficando esquecida.” Provou-a, talvez a medo, “viu que estava excelente”. Enviou-a para um concurso e acabou premiado. E aí poderia ter morrido a ideia feita de que o Vinho Verde só se bebe no ano de colheita.
António pegou na quinta em 1981, altura em que refizeram a vinha com loureiro, depois arinto, alvarinho, vinhão e touriga nacional. Em 1986, fizeram aquele que António descreve como “o primeiro cem por cento loureiro”, num tempo em que a casta “não se fazia sozinha”. Estabelecido que está o potencial do loureiro, hoje António e Maria Francisca, sua mulher e parceira de negócio, são acérrimos defensores da capacidade de envelhecimento da casta. E têm um bom stock de colheitas passadas para servir de testemunho. António mal pode esperar por abrir outra garrafa desse 1986, para perceber a evolução.
“Ele colecciona tudo”, atira Francisca, com um riso cúmplice. Refere-se à reserva de colheitas antigas. Mas também à quantidade de louças de Barcelos que decoram a sala de provas. E ao jardim da casa, com 300 espécies de árvores de zonas temperadas, plantadas em pequenas, pela mão de António. É vir com tempo, que ele tem todo o gosto em partilhar este seu tesouro com os visitantes.
Francisco Pereira e Filipe Macieira, tal como António Vinagre, também ousaram desbravar o potencial do loureiro. Porém, não é de vinhos que tratam, antes de cerveja. Na Letra, que fundaram há nove anos em Vila Verde, produzem cervejas marcadas pela criatividade e pelo experimentalismo, sem perder o norte à consistência.
Das 20 referências que têm actualmente disponíveis – e há sempre algo de novo a fermentar –, contam-se duas grape ales em parceria com Anselmo Mendes. Uma com mosto de alvarinho, adicionado ao mosto de cereal. Outra com uvas de loureiro, adicionadas na fase de fermentação – e posterior estágio em barricas já usadas em vinho. Daqui resultam cervejas com aroma de vinho e amigas da mesa.
Além desta parceria, a aposta estende-se também à Adega Cooperativa de Ponte da Barca, com quem lançaram a série Cervejola, que tem três variedades: uma white saison com mostos de alvarinho, arinto, loureiro e trajadura, uma imperial red ale com aguardente vínica, e uma surpreendente grape inspired red ale feita com mosto de vinhão – de tal modo bem integrado que, ao prová-la, não se sabe onde termina o vinho e começa a cerveja.
A fábrica da Letra é visitável, com explicação sobre a produção, e tem como frente a Letraria, um brewpub onde se pode juntar à prova comida de conforto de cervejaria, como francesinhas, hambúrgueres, pregos e petiscos. Cervejas mais encorpadas tendem a pedir comida, já se sabe.
Caso o estômago peça cozinha regional para a despedida, é caso de fazer mais meia dúzia de quilómetros, até Ponte. O restaurante Torres é o tipo de sítio onde se vai com ideia feita na cabidela de pica no chão, no arroz de lampreia, na carne minhota certificada ou num polvo no forno que consegue ser tenro e crocante ao mesmo tempo – isto além de outros pratos menos esperados, como peixe e marisco frescos ou rosbife folhado. Porém, a melhor forma de contar a história é começar pelo fim.
Chegado o momento da sobremesa, felizmente são muitos os restaurantes competentes, porém poucos são aqueles que conseguem ser surpreendentes. Aqui, termina-se a refeição com o doce à Torres, casamento feliz entre um souflé e um pão-de-ló cremoso, capaz de preencher todos os vazios da alma. Ou então, pede-se o pastel de abade de Priscos, e tem-se uma revelação – o pudim mais guloso de Portugal incrementado como recheio de um travesseiro de massa folhada. Um e outro valem a viagem. E deixam a questão: como vieram aqui parar?
Fernando Torres, o mais velho de sete irmãos, quase todos ligados aos restaurantes da família, conta a história. Primeiro a mãe, Augusta, que abriu uma casa de petiscos em 1968. Depois o pai, António, cozinheiro profissional, que vivia longe, oficiando nas cozinhas de hotéis no Algarve, do Gambrinus, do Tavares Rico. Nos anos 1970, um acidente obriga-o a mudar de ritmo e a regressar a casa. “E trouxe a cozinha de hotel para aqui.” Profissionalizou a equipa, deu-lhes formação, refez a ementa.
Muito antes de se falar de uma cozinha portuguesa moderna, já António Torres a estava a implementar nos arredores de Vila Verde. Trouxe os mariscos, as massas francesas, a técnica rigorosa, e fez da cozinha do Torres uma escola. O resto é a consistência rotinada pelo tempo. E uma sala convidativa, cheia de luz natural e com vista para o monte de São Pedro Fins. Aqui fica-se sem se dar conta do tempo passar. Eventualmente, vem-nos à cabeça aquela ideia batida de que se come sempre bem no Minho. Há frases feitas que não podemos desfazer.