No Algarve há vinhos com atitude – e até com altitude

Longe das praias do litoral, em serras e vales, o enoturismo está a atrair cada vez mais visitantes para zonas menos exploradas do interior algarvio, com solos e climas diferentes.

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Carlos Gracias na sua vinha na zona de Fóia Miguel Madeira
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O fogo de 2018 na serra de Monchique, que destruiu 27 mil hectares, quase fez desaparecer as vinhas que agora são de Carlos Gracias. “Ainda entrou nas extremidades”, conta o antigo presidente da Comissão Vitivinícola do Algarve (CVA), enquanto aponta para os limites do terreno na zona de Fóia, o ponto mais alto do Algarve. Depois do incêndio, quem explorava as vinhas decidiu deixá-las e, no ano seguinte, Carlos aproveitou a saída da CVA para “agarrar naquilo” e limpar o terreno.

Se a serra ganhou fama pela água alcalina – e também pela aguardente de medronho –, do vinho pouco ou nada se falava até Carlos lançar, no ano passado, o Terraços da Fóia, um vinho tinto feito em Monchique, a 695 metros de altitude.

A edição foi limitada, até porque, com pouco mais de um hectare de vinha plantada em terraços, Carlos é um “microprodutor” do Algarve, a pensar num nicho de mercado e a trabalhar sozinho. “A minha aposta não é o volume, é a diferenciação e a qualidade, daí também o preço mais elevado [da garrafa, a 25 euros]”, explica.

Depois de limpar as silvas do terreno que não tinha sido afectado pelo fogo, Carlos conseguiu fazer a sua primeira colheita em 2020, “só com a uva antiga [a Tinta Roriz]”, recorda. Até aí, sempre tinha “fugido da produção dos vinhos”, garante. “Mas apanhei este bicho”, brinca.

Em 2020, decidiu fazer uma experiência e plantar no terreno meio hectare da casta estrangeira Riesling, inspirado por uma viagem a Estrasburgo, pelo Vale do Reno. A verdade é que começou a encontrar semelhanças entre a região francesa, de onde a casta é originária, e o terroir da serra de Monchique. Não só pelos “solos calcários”, explica, como “pelas temperaturas baixas e alguma altitude”.

Pelos vistos, as uvas deram-se bem e a primeira edição do Riesling Terraços da Fóia – Altitude, com a colheita de 2023, vai ser lançada em Março numa edição especial de 300 garrafas (a 25 euros cada, que estarão disponíveis no site da Garrafeira Nacional).

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“A minha aposta não é o volume, é a diferenciação e a qualidade", diz Carlos Gracias Miguel Madeira

Carlos está orgulhoso do vinho. “Está muito interessante, com 11 graus, uma belíssima acidez e bons aromas”, descreve. “Estou a puxar pela frescura, é esse o objectivo.”

Com a sua empresa, a Sul Composto, também tem vinhas numa zona plana, a 300 metros do mar, na zona do Burgau, em Lagos. Nas vinhas da Fóia o clima é bem diferente do litoral e não há problemas de água. “No Verão, podem estar 35 graus em Portimão que aqui estão menos 10 graus”, conta. “E [o terreno] está verde na mesma, nunca fica seco.”

Carlos Gracias estima que o número de produtores de vinho em Monchique cresça um pouco nos próximos anos, dentro dos limites do terreno acidentado. “Custa-me a crer é que alguém consiga fazer vinha mais alta do que esta”, opina. “Quer pelos solos, quer pelo clima.”

Num futuro próximo, a sua ideia é trazer entusiastas do vinho para a Fóia. Só falta perceber como. Já foi contactado por algumas agências turísticas, mas ainda não chegou a acordo com nenhuma. “Uma delas disse-me que preferia sítios mais ‘instagramáveis’”, conta. “Eu não quero cá nada dessa seita”, ri-se.

17 graus e uma infinity pool

Pelo contrário, na Quinta da Tôr, do outro lado do Algarve, à entrada da serra do Caldeirão, o Instagram tem sido uma ferramenta para atrair turistas para visitas à adega, principalmente estrangeiros. A propriedade na aldeia da Tôr tornou-se popular para provas de vinhos e um mergulho na piscina, uma infinity pool que pode ser usada pelos clientes até nos meses de Inverno, o cenário perfeito para fotografias de copo na mão.

“No Verão a piscina enche completamente”, conta o proprietário, o empresário Mário Santos, natural de Loulé, ajudado pela filha no enoturismo e nas redes sociais. “Temos de cobrar 15 euros de consumo mínimo, embora na maior parte das vezes [os turistas] consumam muito mais do que isso.”

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Visita na Quinta da Tôr Miguel Madeira

Em 2011, quando comprou a quinta com dez hectares de vinha por recuperar, Mário “não era grande apreciador de vinhos”, confessa. Hoje, vende garrafas para “várias partes do mundo”, incluindo edições especiais “para um clube de vinhos na Dinamarca”.

Inicialmente, tinha pensado abrir um restaurante na quinta, mas nem foi preciso. “A associação entre o vinho, as provas e a piscina tem funcionado muito melhor do que imaginámos e é representativo do vinho que vendemos”, continua. “Vamos fidelizando clientes.”

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A propriedade na aldeia da Tôr tornou-se popular para provas de vinhos e um mergulho na piscina Miguel Madeira

O vinho Syrah da Quinta da Tôr, com 17 graus de álcool, tornou-se a imagem de marca da casa. De tal forma que decidiram plantar mais um hectare e meio da casta no terreno. O clima, a atingir temperaturas elevadas durante o dia, ajuda à maturação das uvas. “É um vinho diferente, que acabou por [nos] divulgar de uma forma natural”, explica Mário.

Contra todas as previsões, incluindo as “do enólogo e do distribuidor principal”, o vinho acabou por ser um sucesso e o “preferido” de quem os visita. “Os vinhos do Algarve não ficam atrás dos outros do país”, garante Mário, que já tem planos para replicar o negócio da quinta noutra propriedade em Espiche, Lagos. “As pessoas que aqui vêm elogiam não só os nossos, como os de toda a região.”

Solos de xisto e ovelhas

De acordo com Sara Silva, actual presidente da CVA, o Algarve tem agora 50 produtores de vinho e a tendência é crescente, apesar da ameaça da seca que afecta a região e torna o futuro incerto. “A questão da água é um ponto a reflectir, mas estamos optimistas. Temos tido uma entrada de novos agentes económicos e de novos produtores, cerca de cinco a cada ano.”

Até à década de 1970, as vinhas algarvias, sobretudo da casta autóctone, a Negra Mole, ficavam junto à costa, em terrenos mais arenosos. “Com o turismo, [a plantação] teve de se arrastar para as zonas do barrocal e, nos anos mais recentes, tem-se explorado estas zonas mais distantes do litoral, em ambiente mais serrano”, explica a responsável da CVA. Isso tem trazido uma maior diversidade de vinhos à região, de climas e solos distintos, o que lhes tem dado um “carácter diferenciador”, continua.

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Herdade Barranco do Vale Miguel Madeira

O produtor situado mais a norte, a Herdade Barranco do Vale, em São Bartolomeu de Messines, tem o seu próprio microclima, ao abrigo dos ventos do norte, e solos de xisto, o que dá origem a vinhos mais minerais. Os primeiros foram lançados em 2018, graças a Ana Matias Chaves, que decidiu trocar o trabalho no marketing da Disney, em Lisboa, pela vida no campo algarvio, para recuperar as antigas vinhas do avô.

Assim que a herdade pôs no mercado os primeiros vinhos – hoje são 14 referências, o rosé de Negra Mole é talvez o mais conhecido – apostou logo no enoturismo, com provas num curral renovado e visitas pela propriedade que agora tem mais de cem ovelhas da raça churra algarvia. “As pessoas começaram a pedir [as visitas] e vimos que era uma boa oportunidade, com tantos estrangeiros que queriam vir aqui”, diz Ana.

Da anatomia patológica às vinhas

A Quinta do Francês, com 12 hectares de vinha encaixados num vale na zona de Odelouca, foi das pioneiras do enoturismo no Algarve, numa altura em que “só as cooperativas e os pequenos produtores faziam vinhos”, conta Fátima Santos.

Em 2002, o marido, Patrick Agostini, médico francês especialista em anatomia patológica, comprou o terreno e decidiu plantar vinha, com destaque para as castas francesas brancas Chardonnay e Sauvignon Blanc. No início, o enoturismo na quinta, com visitas à adega, uma loja e espaço para provas a funcionar desde 2010, “foi difícil”, confessa Fátima. “Éramos os únicos.”

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Quinta do Francês Miguel Madeira

Agora, mesmo em Janeiro, a quinta recebe visitas de turistas e estrangeiros que vivem no Algarve, além de grupos que aparecem com guias. “Quando bebem [os nossos vinhos] nos restaurantes, os turistas procuram-nos”, garante Fátima.

Pelas contas da CVA, cerca de 70% dos vinhos do Algarve “ficam” na própria região. “Depois temos cerca de 10% para exportação, muito alicerçada no principal produtor, a Casa Santos Lima”, adianta Sara Silva.

Além da restauração, o enoturismo, “que está com grande desenvolvimento na região”, diz a CVA, começa a ser um canal com peso na venda e consumo de vinho. “Consegue-se vender com maior valor acrescentado, sem intermediários, além de ser uma ferramenta de internacionalização e uma fonte de rendimento.”

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