Existe um inegável fascínio popular pelas narrativas do fim do mundo – e um bom exemplo disso é o sucesso dos textos que temos publicado sobre o possível colapso da Circulação Meridional do Atlântico (AMOC, na sigla em inglês).

No momento em que escrevo esta newsletter, verifico que a notícia Circulação no Atlântico pode já estar a caminho de um colapso foi uma das mais lidas da semana, contabilizando 17.000 utilizadores. Porque é que um modelo baseado na Física, que simula a interrupção – futura e incerta – de um sistema de correntes oceânicas, desperta tanto interesse nos leitores?  

Uma explicação possível pode estar no imaginário apocalíptico consolidado pela cultura pop. No filme O Dia depois de Amanhã (2004), um cientista baseia-se precisamente neste tipo de simulações para estimar a paragem do "tapete rolante" que faz circular águas superficiais e profundas no Atlântico. Se esse sistema de correntes falhar, avisa o investigador, haverá consequências terríveis para o clima na Terra.

Poucos são os que lhe dão ouvidos, mas, afinal, confirmam-se os argumentos apresentados pelo cientista na ficção: o aquecimento do planeta conduz ao degelo das calotas e, consequentemente, à redução da salinidade das águas do Atlântico Norte, provocando um colapso no sistema. Trata-se de um evento súbito e cataclísmico com enorme impacto na distribuição de calor no hemisfério norte, deixando várias personagens quase a congelar no interior da Biblioteca de Nova Iorque. O frio é tão terrível que destrói estruturas, obrigando aqueles humanos a queimar livros para sobreviver.

Essa é a beleza do pacto ficcional: nós sabemos que se trata de um filme, e aceitamos que haja ali uma leve pitada científica para tornar verosímil aquele produto cultural. A ciência tem um impacto profundo no nosso imaginário e, portanto, é natural que ideias científicas estejam representadas nas histórias que criamos ou consumimos. E não deixa de ser curioso que, nesse complexo ecossistema mediático, seja a ficção a despertar nos leitores de jornais o interesse por notícias sobre cientistas reais que estudam a AMOC.

Diversos estudos científicos já identificaram sinais de instabilidade na AMOC. Muitos deles propõem modelos que possam oferecer a possibilidade de um alerta precoce, ou pelo menos uma melhor compreensão do impacto das alterações climáticas no influxo de água doce. Apesar de tantas simulações, não se pode afirmar hoje com confiança quando a Circulação do Atlântico será interrompida. O que sabemos é que há sinais de enfraquecimento.

O que o estudo que noticiámos esta semana diz é que o principal sistema de circulação do oceano Atlântico pode já estar a caminho de um ponto sem retorno. A comunidade científica gravita, contudo, à volta do seguinte consenso: não é provável que a AMOC atinja um ponto sem retrocesso ainda no século XXI.

Se é preocupante? Claro que sim. Mas há outros impactos climáticos que, com um grau de certeza superior, nos podem bater à porta muito mais cedo: a Amazónia, por exemplo, pode chegar a um patamar irreversível já em 2050. E, já hoje, temos ursos-polares a deambular à procura de alimentos em terra, uma vez que o decréscimo de gelo lhes roubou a possibilidade de caçar focas. Se a situação de mantiver, alertam os investigadores, poderão morrer de fome. Para aquela espécie no Canadá, é o anúncio de um possível fim, já ao virar da esquina. Mas nenhuma destas notícias despertou nos leitores um interesse comparável ao manifestado pelo colapso da AMOC.

Temos de aceitar que umas notícias são mais atractivas do que outras, sabendo que há diferentes factores que influenciam o desempenho de um conteúdo jornalístico na rede. E um deles pode bem ser a colecção de histórias ficcionais que acumulamos nas nossas cabeças, narrativas que nos ajudam a lidar com questões existenciais, como o medo de extinção ou mesmo o papel que a humanidade pode ter na prevenção de catástrofes. O facto de a ficção incorporar elementos científicos, por vezes simplificados ou distorcidos, não retira nem rigor nem credibilidade à ciência.

A minha memória retém do filme O Dia depois de Amanhã, passados vinte anos, duas imagens que simbolizam a importância da ciência: o investigador que usa dados para alertar os políticos e o mendigo que tenta evitar que demasiados livros sejam queimados. Nos dois casos, fica patente a mensagem de que é o conhecimento, e a capacidade de transmiti-lo, que pode permitir à humanidade lidar com desafios globais como a crise climática.

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Nota da equipa do Azul: por erro técnico, algumas das newsletters enviadas na semana passada surgiam erradamente assinadas por Teresa Firmino e não por Aline Flor, autora da newsletter.