Tu não queres um Game Boy!

“Super Mário?” Se calhar o telemóvel ficou noutra divisão, se calhar adormeceu, se calhar foi raptado por malfeitores e vai ser usado como moeda de troca, se calhar vai aparecer no noticiário.

Foto
“Estou já aí! Num saltinho!” E o Super Mário a arfar, aflito, real, certo que vai morrer Rita Lagarto

Quando era pequena, os meus pais nunca me deixaram ter um Game Boy. Eu esperneava, vociferava, fazia birra, tentava subornar o Pai Natal com cartas secretas: “Querido Pai Natal, não ligues à carta que os meus pais te vão entregar, é só uma fachada, um disfarce! Esta é que é a verdadeira carta! Esquece os livros do Tintin, o Pequeno-Pónei e a bicicleta. O que eu quero mesmo é um Game Boy! Por favor. Eu porto-me bem! Eu sou tão boazinha!”

“Tu não queres um Game Boy!” Os meus Pais usavam o método pedagógico do livre-arbítrio forçado, provavelmente donos de uma premonição iluminada que os fazia prever o domínio coercivo dos pequenos ecrãs, que me poderiam arrastar para um território pegajoso e difícil de escapar, refém de um cenário de premissas impossíveis e expectativas ilusórias.

Nunca tive o meu Game Boy. Mas sempre que ia “estudar” para casa da minha amiga Rita, que tinha um novinho em folha, eu jogava o jogo do Super Mário. Super Mário, o Canalizador! O herói-anónimo, o bravo-à-paisana, a saltar, a rebolar, a coletar moedas no seu mundo a duas dimensões, monocromático, linear, irresistível! Que se movia sempre na mesma direção, sempre em frente na plataforma, contra os inimigos, a galgar os níveis, sempre imortal (mesmo quando morria, mesmo quando desaparecia nos buracos, havia a opção "continue" e ele renascia para voltar ao início e repetir tudo)!

Eu jogava sozinha, com o coração aos pulos, os braços dormentes. O meu Super Mário não precisava de ninguém: o mérito da solidão, da autonomia estóica, sempre na dianteira… Ganhava sempre! Em adulta ganhei um Super Mário na vida real! No mundo 3D. Mas muito melhor, mais bonito, mais alto, mais forte, mais concreto, mais palpável. Todo herói-anónimo cheio de cenários pegajosos. E eu toda premissas-impossíveis, toda expectativas-ilusórias.

"Tu não queres um Game Boy!" O problema é que às vezes ele ficava sem bateria. Não atendia. Não respondia. E durante dias desaparecia completamente. E eu, soterrada no silêncio, sem saber o que se passava — ele não precisava de mim, não precisa de ninguém, vivia bem sozinho, sempre viveu. Nunca o amor! (Nunca, que o amor é o inimigo dos heróis. Fraqueza para quem avança na dianteira, sempre sozinho, sempre!) E eu, refém, a tentar passar de nível, a perder no jogo, a recomeçar sempre… "Querido Pai Natal, esta é a carta verdadeira. Quero um Game Boy que me queira."

Mas um dia, um telefonema: "Ana estás aí? Não me sinto bem… Preciso de ti.” Precisa de mim? Super Mário! Meto-me no carro e prego a fundo! Sempre em frente, sola do sapato no acelerador, sola do sapato no coração aos pulos, a pisar o peito, a calcar a aorta, os braços dormentes (será que estou a ter um mini-enfarte? Um micro-badagaio? Não. É muscular, é muito uso… Muito uso do peito, são as push-ups, são as flexões, as inflexões, os silêncios, os ditos por não-ditos, as quedas, os ataques, os buracos, as tensões...).

Acelero! Sempre em frente. Super Mário, aí vou eu! Moro a dez minutos, da minha casa para a dele. Ele mora a quatro horas, da casa dele à minha. Às vezes mora a dois dias, sem comunicações. Ultimamente morava a “nunca” da minha casa. Mas naquela tarde: “Ana estás aí?” Se estou aqui? Como não haveria de estar aqui, estou sempre aqui, seja em que parte for, sempre presente, sempre dentro da minha cabeça, não desligo de mim, por vezes bem que gostaria, só para descansar um bocadinho, sou eu própria até à exaustão…

“Estou já aí! Num saltinho!” E o Super Mário a arfar, aflito, real, certo que vai morrer. E eu, que acaso feliz (!) sou aquela a quem deseja segurar a mão na iminente chegada do derradeiro momento, no seu suspiro final. Super Mário, mortal! “Mas espera, não morras já, não desligues! Fica em linha! O que é que sentes? Vou ligar para a Saúde 24! Eles sabem sempre o que fazer.” “Quais são os sintomas do paciente?”

“É o Super Mário! Tem todos os sintomas: bigode, corpo a duas dimensões, não tira o fato, a farda, move-se sempre em frente, mas está com uma fraqueza!” “Uma fraqueza? Tem o número do cartão de cidadão?” Não tenho, mas estou a caminho, numa estrada aos buracos, a dar solavancos nas curvas, solavancos na coluna, solavancos nas memórias, na compreensão. Afinal ele precisa de mim, afinal não perdi o jogo? Afinal havia mais um nível, uma porta secreta, um alçapão. Ele precisa de mim!

Chego. O Super Mário está encolhido, é um herói num corpo de criança, e eu agarro nele entre os braços, a fazer-me de forte, a sentir uma guinada no peito (é muscular, foi só uma cãibra no coração). Ele está agoniado, enjoado: "Vou vomitar, segura-me a cabeça…” e vomita. E eu toda: “Estou aqui, vai correr tudo bem, é só limpar isto, é só limpar as coisas esquisitas que te saem a boca sem querer, que às vezes dizes coisas estragadas, sem querer, a vomitar.” E ele quebradiço, frágil, quase a partir, a escorrer mucos, eu que pensava que o Super Mário era feito de fibra elétrica, de fios da Nintendo — agora estão em curto-circuito.

É melhor chamar o 112! Vem a ambulância de sirene ligada. “A menina não pode vir aqui, mas venha atrás de nós, sempre em frente!” “Ah, obrigada senhor paramédico! Obrigada por me tratar por ‘menina’, detesto que me tratem por ‘senhora’.” E o Super Mário na maca, a olhar-me com olhos que gritam: “Ajuda-me, que não sei o que é isto que está a soltar-se do meu corpo, não é suposto acontecer a um herói de video games, tenho medo que seja amor. Como é que eu volto atrás? Ajuda-me!” E eu ajudo.

Entro no hospital com um crachá de benfeitora ao peito. Com licença deixem passar, não veem o que diz a minha identificação? Eu sou Lady Di, sou Madre Teresa de Calcutá, sou Boazinha, sou Tão Boazinha, sou Miss Universo, Miss Simpatia, desejo o bem de todas as crianças mas sobretudo o dele, se as crianças tiverem de esperar, lamento, mas deem a pulseira vermelha ao Super Mário! Isto é uma Super Urgência, ele não pode morrer nos meus braços! Pior! Nos braços da enfermeira da triagem, que não é feia de todo. O combinado era ser eu a salvadora!

Aguardo três horas na sala de espera das Urgências (até os super-heróis esbarram na veracidade do Sistema Nacional de Saúde) mastigo um pacotinho de M&Ms, mastigo as dúvidas… Como é que, depois de tudo, vim parar a esta espera? Depois de todos os silêncios, as rejeições? Depois de cair da plataforma, pular, voltar a cair, repetir, não conseguir passar do mesmo nível, parece que nunca saio do mesmo lugar… Mas o que é que eu havia de fazer? Não se deixa um herói em apuros!

O Super Mário está prostrado, não sabe se a dor é real ou imaginária, não me olha, envergonhado de não se reconhecer assim, avariado, na horizontal. Pode ser das pilhas, pode ser do hardware, do software, dessa mania de ficar preso em pixels sem nunca experimentar o abismo da vida real, sem nunca arriscar uma vez que seja o ser de carne e osso. Faz TACs, exames, análises ao sangue. Que saúde de ferro! O Super Mário não acusa nem um sopro de coração, nem um sinal de vida. Máquina! O médico recomenda apenas descanso e comprimidos para as náuseas, e eu ao lado dele, a fiel companheira da agonia, a dupla, o Luigi, como nos filmes românticos de Natal…

Vamos embora, ele passa-me a chave de casa para as mãos, encosta-se no meu tronco como quem se quer deitar para sempre na minha realidade (estou quase a ganhar, estou mesmo a chegar ao último nível!). Arrumo a casa, vou à farmácia, preparo uma refeição, faço a cama, coleto pontos, uso todos os bónus. Saio de manhã… Logo repito, logo regresso, à nossa casa, a um minuto da minha fantasia.

“Estás bem?” Silêncio. “Super Mário?” Se calhar o telemóvel ficou noutra divisão, se calhar adormeceu, se calhar foi raptado por malfeitores e vai ser usado como moeda de troca, se calhar vai aparecer no noticiário. “Ana! Estou aqui, o Super Mário, estou em Marte, tive de vir numa missão importante!” Um dia, dois dias… Três dias. Silêncio.

O meu corpo esmaga-se como uma migalha nas mãos de um inimigo feroz de dedos eletrónicos. “Estou preocupada. Sei que tens bateria, estás online. Vê-se aqui no cantinho do ecrã…” Nada. Super Mário. Será que foi real? Será que sou eu? Que não existo? Foi só um jogo de Game Boy? Sinto uma descarga elétrica. Game over.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Ler 6 comentários