O dia dos namorados devia acabar de uma vez por todas: quem namora não precisa de o lembrar. Quem está sozinho, e não queria, sente-se mais triste.
Estas invenções, que celebram essencialmente o negócio, afastam-nos cada vez mais do essencial: celebrar os dias todos ou, na falta de motivos para celebrações, inventar um calendário só nosso onde possamos assinalar os dias relevantes e não aqueles para os quais somos empurrados.
Não sei quantas vezes fui levada nessa correnteza pseudo romântica, mas lembro-me de aproveitar o dia para jantar com amigas, pessoas sozinhas que se sentiam quase ostracizadas por não ter a quem mandar um coração ou, pior, ter a certeza de que não receberiam nenhum. Hoje em dia, felizmente, banalizamos os corações. E digo felizmente, falando dessa banalização, porque os corações deixaram de ter esse cariz unicamente romântico para poderem ser trocados entre amigos, pessoas que gostaram de um instante, desconhecidos que se sentiram mais vivos por causa de alguém ou de alguma coisa. Os corações não são exclusivos dos namorados, dos amantes ou dos casados. São de quem os quiser agarrar. E, lembremo-nos, todos temos um. Um coração que bate, independentemente de estarmos apaixonados ou acompanhados.
A questão que surge muitas vezes nestas alturas é – então como fazemos chegar o nosso amor a quem verdadeiramente importa se já gastámos os corações todos? Se os usámos por cada canção que ouvimos ou por cada pessoa que nos fez sorrir? A resposta
ainda parece simples: então e as palavras? Então e os actos? Não valem mais do que mil corações insuflados?
Os namorados, ou os que são correspondidos (há namoros unilaterais), não precisam realmente deste dia para dizer ao outro que o amam. Não precisam de cumprir calendário. O inferno deste 14 de Fevereiro, que culmina com um jantar num sítio lotado, sem privacidade, onde todas as mesas se querem iguais, onde as perfumarias voltaram a vender os mesmos perfumes, onde tanta coisa é afinal camuflada, é algo onde não nos devíamos meter. Melhor, não devíamos sujeitar quem sofre por estar sozinho a este dia tão pouco útil. Proponho então algo diferente: que o comércio, que não quer perder este filão, deixe os pares jantarem em casa e puxe até si, sem balões nem pétalas de rosa, os solteiros do momento. São eles que merecem atenção e ternura redobrada. Não são os que podem ter esse mimo diário. Obrigar os pares a estarem em casa num silêncio que torna tudo mais claro é que é o desafio. Quem precisa de confusão se tem amor?
O dia de São Valentim devia ser dos solteiros. Dos que têm a seta a postos ou que querem ser um alvo fácil. Por que não assumi-lo? Quantos neste e nos dias próximos não têm de inventar desculpas para não sair de casa por estarem sozinhos? E, já agora, quantos não estão bem melhores sozinhos do que numa relação cheia de mentiras que são branqueadas (como as toalhas de mesa do restaurante fancy) num jantar que se espera que dissolva o indigesto?
Não quero o comércio triste com a falta de pares, mas a noite poderia ser verdadeiramente ímpar se o íman fosse para os que estão sozinhos.
Estamos todos cansados de datas obrigatórias, de dias que nos fazem sentir mais tristes quando o mundo já não é propriamente um sítio recomendável. Não estará na altura de subverter as regras? O amor, já agora, também não é muitas vezes essa subversão?
Eu (e)namorada me confesso: vou ficar em casa a ouvir histórias à mesa, talvez um Coltrane em fundo. As velas ardem até ao fim quase todos os dias. O coração bate sem balões nem rosas. Temos as palavras e, podendo dar as mãos, ainda as damos melhor em casa. As mãos, os beijos e tudo aquilo que não se vê.
O coração ainda bate.