Postal de Santa Marta de Penaguião: falar de “tomates” sem tabus

A campanha está a ser levada a cabo pela Associação Vidas Reais Causas Reais (AVRCR) com o lema “Apalpa-os”, procurando incentivar jovens e adultos a realizarem com frequência o autoexame testicular.

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Os 43 rapazes estavam eufóricos quando ocuparam os seus lugares no auditório da escola João da Silva
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A vila de Santa Marta de Penaguião situa-se na sub-região do Douro e pertence ao distrito de Vila Real. Após deixar a A4 na saída de Vila Real, percorri um carrossel de 14 km até à pacata vila. Dirigi-me à Escola Básica 2, 3, onde 43 rapazes entre os 12 e os 14 anos aguardavam para me ouvirem falar sobre testículos.

Há quem pense que não se deve falar sobre essas coisas nessas idades e até noutras imediatamente a seguir (15,16,17) e até no início da vida adulta (18,19). Escrevo "há quem pense", porque isso já me foi transmitido (por outras palavras, sendo "desadequado" o termo mais utilizado) em resposta a algumas propostas que enviei a escolas e clubes desportivos com a sugestão de realizar sessões (gratuitas) de sensibilização para o cancro do testículo. A campanha, já noticiada no PÚBLICO, está a ser levada a cabo pela Associação Vidas Reais Causas Reais (AVRCR) com o lema "Apalpa-os", procurando incentivar jovens e adultos a realizarem com frequência o autoexame testicular.

Nota: nas sessões de sensibilização, explico que o termo técnico correto para o autoexame testicular é palpar: "apalpa-os", que tem uma conotação mais sexual, foi escolhido com o bom propósito de chamar a atenção, ou seja, é marketing.

Ora, os responsáveis da Câmara Municipal de Santa Marta de Penaguião e da Escola Básica 2,3 partilham da opinião da AVRCR de que se pode e deve falar publicamente de testículos quando está em causa a saúde dos miúdos, jovens ou homens adultos. E que melhor idade para sensibilizar para a doença do que exatamente antes do início da faixa etária mais afetada pela doença (15-35 anos)?

Os 43 rapazes estavam eufóricos quando ocuparam os seus lugares no auditório da escola. Percebi-os. Primeiro porque abandonaram a aula a meio, deixando as raparigas para trás — a​ psicóloga da escola, que nos acompanhava, achou que ter as meninas presentes seria excitação a mais. Concordo. Defendo que as mulheres de várias idades devem ter um papel nesta sensibilização, alertando pais, irmãos, namorados e amigos para a doença, mas conheço a faixa etária dos 12-14 anos e o mais provável é que os rapazes ficassem envergonhados. E tudo o que não queria é que ficassem envergonhados. Isso seria alimentar o tabu. E a ideia é acabar com o tabu. A segunda razão da excitação foi o facto de terem visto o logótipo da campanha na minha camisola: dois tomates (fruto) e a palavra "Apalpa-os".

(Há dias, após uma sessão de sensibilização com jovens de 17 e 18 anos, um clube desportivo recusou publicar o logótipo "Apalpa-os" por ser "muito forte e passível de ser mal interpretada pelos pais dos jogadores"; já falei de tabu, certo?)

Comecei por perguntar aos miúdos quantos testículos tinham. Algazarra, vozes e gestos de machos para demonstrarem que os tinham (aos dois) no sítio. Depois, expliquei de forma breve que os testículos podem ter diversos problemas e que um deles é o cancro. Referi as percentagens de cura da doença e a importância de a detetar precocemente através da palpação. Passei a explicar, utilizando suporte digital, como se faz o autoexame.

Confesso que de início foi um pouco difícil domá-los. Tudo era motivo de riso. Tudo ficou mais calmo quando lhes disse que, ao contrário deles e por ter tido cancro no testículo, só tinha um tomatinho. Silêncio total. Atenção absoluta. Incrível a capacidade de perceção do que é grave, sério e importante nestas tenras idades.

Apressei-me a recordar que o cancro do testículo é raríssimo e curável na maior parte dos casos. Não quero, de forma alguma, assustar alguém, mas sim alertar. Mas acredito que, se um dia notarem um nódulo, um inchaço, uma dor, pessoas esclarecidas saberão a importância de ir ao médico sem grandes delongas, porque isso pode poupá-los a enorme sofrimento e, até, salvar-lhes a vida. É isso que me move.

Depois, pedi aos miúdos que fizessem perguntas. Brotaram num instantinho. Ei-las:

  1. Quando é que descobriu que tinha cancro do testículo?
  2. É possível ter filhos depois disso?
  3. O cancro pode passar para os filhos da pessoa que tem/teve cancro no testículo?
  4. Como é que isso aparece?

Respondi de acordo com a minha experiência e seguindo a informação que os conselheiros da AVRCR, nomeadamente o professor Passos Coelho, um dos maiores especialistas em Portugal no tratamento desta doença, e da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (parceira da AVRCR), nos passaram sobre o tema.

Um dos momentos altos da sessão aconteceu após a seguinte pergunta: "Quem é que aqui já levou uma bolada ou pancada nos tomatinhos?"

Quarenta e três mãos no ar. Um deles, 14 anos, falou mais alto para dar uma explicação para a algazarra: "Nós às vezes fazemos um jogo que é dar pancadas uns aos outros naquele sítio!"

Alertei, de forma bastante incisiva, para os perigos de tal brincadeira. E depressa o rapaz que descrevera o jogo se levantou para falar (ordenar) ao grupo: "Nunca mais ninguém brinca a isso aqui! Ouviram? Nunca mais ninguém brinca a isso aqui!"

"Boa, miúdo, é preciso tomates!", disse eu entredentes.

(Será que falar aos jovens sobre testículos é assim tão "desadequado"?)


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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