Tentáculos da vigilância

Cedendo à promessa de eficácia na proteção, expomo-nos de outro modo a intrusões, abrimos os nossos espaços privados a uma ingerência omnipresente e investimo-nos do direito de espiar os demais.

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Megafone P3: Tentáculos da vigilância Pexels/ Scott Webb
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Quando apareceu a primeira proposta de montagem de um sistema de videovigilância no edifício, no rescaldo de um primeiro assalto à garagem, um dos seus defensores deu como exemplo as empresas de que era proprietário, onde tinha conseguido apanhar funcionários que furtavam material graças à presença das câmaras, a que tinham acabado por se habituar, ao ponto de as esquecerem.

É com esse oblívio que contam os cogumelos que sub-repticiamente vão pontilhando as estradas, as ruas e os transportes públicos, depois de invadirem os espaços comerciais. Sub-repticiamente, pela falta de permissão e pelo tamanho e discrição dos dispositivos, que tendem a passar cada vez mais despercebidos, funcionando como extensão das câmaras que já todos usam no dia a dia. Mas que alguém se esqueça e deixe de reparar numa câmara não significa que ela deixe de estar lá.

Com a adaptação que vai chegando, e aberto o precedente, torna-se cada vez mais fácil que as vontades se dobrem à instalação de um número crescente de câmaras, sob pretextos que continuam a cair sob a alçada da “segurança”, esperando-se que ninguém conteste uma necessidade de tal modo primária. Para tal, os poderes que fazem mover o mundo mantêm as populações ocupadas na luta pela sobrevivência ou demasiado distraídas pelos escândalos políticos para repararem ou sequer se incomodarem com insignificâncias como esta, que tendem à normalização. Mais ainda, são levadas a crer que as soluções tecnológicas e a vigilância vêm acalmar a ansiedade gerada pelo clima de insegurança, como um supositório apetecido para a febre, que custa a entrar, mas depois já lá está. Entre o direito à privacidade e o clamor por segurança, o segundo ganha por falta de quem se atreva à contestação. Afinal, a privacidade parece um luxo face à lista cada vez mais longa de motivos que nos dão para temermos pela vida e pelo resguardo dos nossos bens.

Com isto, pensa-se no imediato, perdendo-se de vista as consequências das decisões a longo prazo. Cedendo à promessa de eficácia na proteção, expomo-nos de outro modo a intrusões, abrimos os nossos espaços privados a uma ingerência omnipresente e investimo-nos do direito de espiar os demais, inclusive na própria área habitacional, permitindo que a lógica da vigilância trepe das áreas ditas "comuns" aos espaços íntimos, até que eles deixem de existir. O próprio conceito de intimidade está em vias de extinção, uma noção que parece estrangeira e que não goza do mesmo direito à proteção que a vida e os bens (como se estar vivo fosse a mesma coisa que viver e todos os meios se justificassem na perseguição desse fim).

Nas ruas cartografadas sem licença, somos um boneco desfocado num palco de impessoalidade, em que a desumanização vai ganhando terreno. O covil do medo seduz com as suas promessas, uma ilusão de conforto que defrauda forçosamente as expetativas. No fim, o Medo é um senhor que não entrega alforrias – o contrato de escravidão é vitalício, com ou sem câmaras. Eu digo sem.

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