Nunca fui boa a ser adulta, apesar de raras vezes ter sido criança.
Íamos de comboio ao Porto e eu ficava muito tempo num consultório, antes de pensar no que me levava até ali. Ficava horas, enfiada numa sala de cortinados longos, a observar, a construir as minhas histórias. Via um mundo para além daquele que existia. Ainda é assim. Continuo a querer ver mais. Pode ser uma defesa? Certamente que é.
Vemos para além do palpável, do inteligível. Vemos aquilo que não poderemos explicar a ninguém até encontrarmos alguém que pensa da mesma forma que nós. No meu caso demorou tanto, mas dura até hoje.
Quantas vezes me permiti ser criança? Poucas. Eu não sabia o que era ser criança. Nós não sabemos.
Hoje em dia, logo de manhã, aos fins-de-semana, um riso de miúdos ecoa na rua e eu posso acordar com eles. Sei que estão a ser crianças sem pensar na vida, que não seja nesse passeio que se prolonga pelo dia. Pelos dias, até chegar de novo a escola.
Lá em casa medíamos bem o que era a infância: as montras a partir das quais namorávamos um casaco, uns sapatos, um kispo. Não havia dinheiro para tanto. Cada ida ao Porto era bem estudada e, se não fosse por uma ida ao médico, seria para irmos às compras. O dinheiro estava contado. Um kispo estava garantido, pelo menos, para dois invernos. Não é tão curioso como essa gestão foi tão afrouxada? Os miúdos que beberiam a caneca de leite na escola, noutros tempos, são agora os que compram telemóveis de centenas de euros? Onde é que estamos a ir? Onde é que já não vamos? E o que é que isto revela de nós?
Estarão estes miúdos a ser crianças sem noção dos seus limites ou, ao contrário de nós, são adultos antes do tempo e sem necessidade, pautados pelo excesso? O excesso, que perspectiva de vida nos dá? Define uma linha que constantemente estamos a ultrapassar ou ilude-nos sobre o que estamos permanentemente a alcançar?
E por que passámos a ser tão elásticos em relação aos pedidos dos nossos filhos, quando muitas vezes não somos assim tão flexíveis em relação ao que nos permitimos? A culpa católica perde força na proporção da nossa descendência?
Seria interessante avaliarmos de que forma o nosso contributo desmedido, excessivo e pouco racional com os nossos filhos tem contribuído para a perda de valores desta sociedade. Nada de novo, portanto. Estou a atirar a primeira pedra que agora se chama tablet.
“No meu tempo é que era bom!”. Mentira. Nesse nosso tempo éramos bastante tristes, medindo com a culpa aquilo a que tivéramos direito. Acho que muita da nossa auto-estima se perdeu nesses anos, mas agora, que a auto-estima é uma palavra praticada e as consequências do excesso nem por isso, vemo-nos quase perdidos entre aquilo que devemos, podemos e o que é razoável ter.
Claro que fui crescida por tudo aquilo que não pude ter. Não tenho a certeza se isso foi bom para mim ou para os que me seguiram. Acho que nos está a faltar a todos, pais e filhos, uma reflexão séria sobre o material versus o território afectivo. Por acaso o afectivo custa muito mais a conquistar, mas ainda vamos demorar a chegar a essa conclusão.
Até lá vamos crescer de outras formas. De chamadas emergentes e inesperadas para aquilo em que o mundo se torna. Está a ser veloz a transformação desta sociedade. Um manual escrito durante décadas, séculos?, pode ser derrubado num vídeo com três minutos.
Não aprendemos nada se pensarmos que trocamos o conhecimento por um sortido de graças fáceis.
Fico assustada: eu, aquela que cresceu a não ser uma adulta com todas as certezas e que vim de um lugar onde nunca fui verdadeiramente criança.
O caminho foi-nos dificultado. Precisamos de mais tempo para dizer onde é que estivemos melhor.
O coração ainda bate.