AfricaMuseum, em Bruxelas, analisa a proveniência das suas colecções coloniais
Na linha da frente da investigação que a Bélgica está a levar a cabo sobre a restituição de bens culturais ao Congo, o museu inaugura esta sexta-feira a exposição Repensar as Colecções.
Desde 2018, ano em que reabriu como AfricaMuseum, que o Museu Real da África Central, em Tervuren, nos arredores de Bruxelas, tem sido um exemplo de como transformar um museu de etnografia ancorado numa narrativa colonial numa instituição cultural em processo de descolonização, que questiona a sua história e o seu património de forma crítica e pedagógica.
A este processo não foi alheia a discussão sobre a restituição de bens patrimoniais e de obras de arte às ex-colónias, que ganha agora um novo fôlego na instituição. Esta sexta-feira inaugura-se Repensar as Colecções, uma exposição temporária centrada nas possíveis abordagens à investigação sobre a proveniência deste tipo de objectos e à sua consequente devolução. “Como se pode descobrir a origem das colecções? Que novos conhecimentos podem ser obtidos a partir destas proveniências? E o que deve acontecer a essas colecções, dentro e fora das paredes dos museus?”, questiona-se no texto de apresentação da mostra, que pode ser vista até Setembro.
O acervo do AfricaMuseum é na sua maior parte composto por peças apreendidas durante a colonização belga do território que é hoje a República Democrática do Congo (RDC), um dos casos mais violentos do colonialismo europeu (há dois dias assinalou-se, precisamente, os 63 anos do assassinato de Patrice Lumumba, o primeiro primeiro-ministro eleito em democracia naquele país, num golpe apoiado pela Bélgica e pelos Estados Unidos). Uma das peças centrais de Repensar as Colecções é a chamada estátua do chefe Ne Kuko, “um dos símbolos da espoliação” colonial.
"As diásporas congolesas vêem esta estátua como um emblema da necessidade de restituição", afirma Agnès Lacaille, uma das curadoras da exposição, ao jornal francês Le Monde. Um comerciante belga, Alexandre Delcommune, apossou-se dela durante um ataque aos chefes de Boma em 1878, para os castigar por terem introduzido impostos mais elevados nas suas rotas comerciais. À época, os objectos foram apreendidos “com violência” e “coerção”, sobretudo por soldados, funcionários do Estado e missionários, sublinha o historiador Didier Gondola, co-autor do livro La Fabrique des Collections, citado pelo Le Monde.
Outra das peças presentes nesta exposição é o xilofone Manza, retirado em 1911-12 da província de Bas-Uélé. "Quando se retira um objecto como este, retira-se a possibilidade de uma comunidade manter os seus costumes culturais. Pode devolver-se um objecto, mas não se pode devolver o que essa comunidade perdeu", diz a co-curadora Sarah Van Beurden, adiantando estar planeada uma iniciativa que envolverá jovens da comunidade de onde veio o xilofone para recriar a música tocada no instrumento "de uma nova forma".
A inauguração de Repensar as Colecções vem no seguimento da lei de restituição belga, aprovada na Primavera de 2022, e que está a ser acompanhada por uma análise sobre a proveniência dos objectos. “Queremos saber muito mais sobre a origem dos objectos e se podemos afirmar que foram obtidos com recurso ao roubo, à violência ou à manipulação", disse à agência France Presse Bart Ouvry, director do AfricaMuseum, que lidera esta investigação.
Em Fevereiro de 2022, foi entregue às autoridades congolesas um inventário que contabilizava mais de 80 mil bens culturais (esculturas, máscaras, utensílios, instrumentos musicais, entre outros), originários sobretudo da República Democrática do Congo. Quatro meses mais tarde, a Bélgica adoptou uma lei que rege a restituição dos bens saqueados entre 1885 e 1960, período durante o qual o Congo foi propriedade do rei Leopoldo II e se tornou uma colónia belga. O território viria a conquistar a independência a 30 de Junho de 1960.
Por agora, o governo congolês ainda não apresentou qualquer pedido de restituição, afirma Thomas Dermine, secretário de Estado belga responsável pelo dossier, acrescentando que deverá ser criada uma comissão mista de peritos belgas e congoleses para decidir se a aquisição dos objectos foi ou não legítima, aponta o Le Monde.
No final da década 60, Mobutu Sese Seko – então governante do país, conhecido na altura como Zaire – fez um pedido de restituição, na sequência de uma exposição nos Estados Unidos de objectos congoleses das colecções de Bruxelas. No final dos anos 1970, o Museu Real da África Central devolveu 114 peças ao país.
"No tempo de Mobutu, os europeus diziam: 'Estamos a fazer-vos um favor porque estamos a preservar os vossos objectos. Se lhos devolvêssemos, acabariam no mercado internacional da arte, seriam revendidos, porque o governo é corrupto, ou estragados, porque vocês não têm meios para os conservar", diz o historiador Didier Gondola. “As coisas mudaram”, assinala. “Em Kinshasa há um museu muito bom, tão moderno como este, onde ainda há espaço para reintegrar estes objectos no património nacional. Por isso, este receio não deve ser utilizado como justificação para arrastar os pés na concretização de uma restituição rápida e eficaz.”