Quem quer ser jornalista? Por este andar, ninguém

São precários, extremamente precários os acordos, que em alguns casos não se podem sequer designar de contratos, entre trabalhadores e patronato.

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Nuno Ferreira Santos/Arquivo
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É ainda nos bancos da faculdade que vou percebendo o torcer do nariz ao percurso profissional de jornalista. Ao lecionar disciplinas da área da comunicação, questiono, conhecendo uma nova turma: quem é que sonha ser jornalista? “Eh! Professora, nem pensar. Eu não sou parvo.” Assumidos e audazes nas respostas que demonstram sonhos, jornalismo parece estar fora das ambições de vida. E quando se pede que executem trabalhos da rotina jornalística, alguns até acabam enamorados, mas, sempre hesitantes e com outras opções em vista. Numa turma de 30, encontro somente dois estudantes que timidamente, sussurram: “Eu acho que quero ser jornalista, professora.”

O que temos assistido por estes dias, com grandes e reputados nomes dos nossos media em agonia, confirma essa perceção de dificuldades acrescidas, por parte dos jovens estudantes, sendo que este drama, é já uma realidade velhinha e gasta na imprensa regional. Há colegas que nunca sabem em que dia do mês vão receber o ordenado, outros ainda aguardam pelo subsídio de férias da época de veraneio e vão lidando e sobrevivendo como podem. Uns porque têm bases familiares que permitem a loucura, outros porque não se veem mesmo a executar diferente ofício, ainda que signifique viver no limbo. São precários, extremamente precários os acordos, que em alguns casos não se podem sequer designar de contratos, entre trabalhadores e patronato.

E por estes dias, tenho visto muitos jornalistas manifestar-se a favor de quem passa dificuldades, mas raramente, estes anos todos, os problemas da profissão foram alvo de notícia, nomeadamente o contexto regional, dos correspondentes, por exemplo. Note-se que há cerca de dez anos, observou-se o quase total encerramento de delegações regionais de televisões, rádios e jornais pelo país fora.

Todavia, finalmente, o jornalismo está em manchete, nas capas dos principais diários e nas aberturas dos telejornais. E porquê? Porque atingiu os grandes e quando falo dos grandes, não falo dos jornalistas todo o terreno, à chuva e ao sol, até porque esses há muito tempo, que preveem este desfecho. Falo da elite de comentadores, que tem voz na rádio, na televisão, nos jornais ditos de cobertura nacional, e que sendo atingida, tem finalmente colocado o dedo na ferida em inúmeros debates.

Cinicamente, tenho visto administradores e até diretores de outros órgãos de comunicação apontarem o dedo ao que se passa no Global Media Group, sem que façam também um exame de consciência no que diz respeito aos títulos que lideram. É preciso dizer que órgãos de serviço público, como a Agência Lusa ou a RTP mantêm alguns profissionais a recibos verdes, em situações muito periclitantes.

Vem aí o 5.º Congresso dos Jornalistas com muitos debates e muitas comunicações previstas. Espera-se que o encontro seja o grito definitivo de uma classe que está há demasiado tempo em silêncio e num momento em que muitos outros setores reivindicam direitos.

Os médicos reclamam um aumento do salário base, os enfermeiros querem a integração imediata nos quadros, os professores querem ficar próximos da sua área de residência, e os jornalistas? Os jornalistas querem simplesmente receber os ordenados ao final do mês. E se não for pedir muito, trabalhar, respeitando as normas éticas e deontológicas da profissão. É que nos relatórios de estágio de ensino superior, verifico que os estudantes realizam conteúdos patrocinados (entrevistas a presidentes de câmara, divulgação de iniciativas municipais previamente pagas) como trabalhos do foro jornalístico, ficando também patente que as redações estão a ser depenadas de recursos técnicos e humanos. Dos colegas que frequentaram comigo, o curso de Jornalismo, em Coimbra, poucos são jornalistas, talvez meia dúzia, se tanto. E dessa meia dúzia, metade pondera deixar ou já ocupa outras profissões que permitem pagar as contas. É que, vive-se da paixão um certo tempo, mas não o tempo todo, quando a inflação duplica ou triplica as faturas.

Costumo dizer, que só se percebe a importância do jornalismo e dos jornalistas, quando deles se precisa. O Jornal de Notícias tem feito ao longo destes anos um trabalho ímpar, no que diz respeito à cobertura das diversas regiões. A TSF é uma rádio de referência no panorama internacional, em termos da sua qualidade técnica e editorial. O Diário de Notícias continua a apostar em histórias que mais ninguém tem, não retratando apenas a lógica da agenda.

É o momento de calçarmos os sapatos dos outros e perguntarmos: E se fosse comigo? Não podemos igualmente ignorar a falácia de que nos fala Fernando Alves em entrevista a este jornal, quando declarou: “Eles queixam-se sempre do prejuízo que dão os jornais e as rádios. Então porque é que os compram?”, questiona aquele que é um dos fundadores da TSF.

Sabe quem trabalha nos recursos humanos dos media portugueses que a disparidade e desigualdade salarial também contribuiu para o cenário atual, mas desse tema já falei noutra crónica, em referência à pirâmide invertida do jornalismo precário.

Como se dá a volta a isto tudo? É também uma questão cultural verificar que os portugueses leem poucos jornais. Na imprensa regional, sabe quem gere o departamento comercial, que após o falecimento dos pais ou dos avós, é esperada a visita dos descendentes mais jovens, apelando ao corte da assinatura. Porém, cidadãos oriundos de comunidades estrangeiras, como Holanda ou Inglaterra, mesmo não dominando a língua, demonstram interesse em assinar uma publicação.

A publicidade já não chega e quase ninguém quer comprar notícias, porque o senso comum, faz acreditar que está tudo nas redes sociais. Talvez seja tempo de se resolver o problema na raiz e incluir, definitivamente, a disciplina de Literacia Mediática no ensino básico e secundário.

Este é, talvez, também o momento de se debater a criação de uma Ordem de Jornalistas, que regulasse e dignificasse o acesso à profissão, abandonando a ideia de que qualquer um pode ser jornalista, bastando o comprovativo de que escreve para um órgão de comunicação. Como é possível atribuir-se o título de equiparado a jornalista? Gostava de ser atendido no SNS por um equiparado a enfermeiro?

O jornalismo já não pode ser chefiado por amadores nem com amadorismo. A maioria destes diretores e administradores de imprensa e rádio não percebem nada de jornalismo nem nunca tiveram ou receberam formação na área. O artigo do jornalista Pedro Correia, de 2017, foi clarividente nesta matéria.

Sob o escudo da liberdade de expressão, ainda que totalmente compreensível por receio de restrições ao exercício da profissão, os jornalistas têm afastado a possibilidade de criação de uma Ordem. O II Inquérito Nacional aos Jornalistas Portugueses (1998) concluiu que apenas 16,4% dos inquiridos defendia a existência de uma Ordem dos Jornalistas. Contudo, sem uma regulação efetiva, manda quem pode, direções e administrações que não percebendo nada de jornalismo, decidem unicamente pela ótica dos números. Os códigos, estatutos, normas jornalísticas parecem não ser suficientes para fazer face às ameaças com que lida, atualmente, o setor.

Um minuto de silêncio, em respeito por todos aqueles que vivem com a corda ao pescoço, na esperança de continuar a exercer livremente a, ainda assim, mais bela profissão de todas.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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