O caso Manel do Tinder: ficou mesmo doente ou deu ghost?

Como o deixar ir quando, depois de horas e horas de “nãos” e “sins” para cada lado, se encontra alguém que não irrita nem escreve “heyyy”, com muitos “y” e pouca personalidade?

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Megafone P3: Nas trincheiras das apps de dating: o amor é como o UNO Nuno Alexandre
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Alguma vez ficaste doente e foste ao Google descobrir que morte inevitável é que alguns simples sintomas te trariam? Estar no mundo das apps de encontros — as trincheiras, como se diz por aí — nada mais é do que coleccionar dores de cabeça e tentar interpretá-las. Apesar de o conceito ser bastante directo, com uma lógica quase de jogo, conseguimos baralhar-nos e deixar tudo confuso, tal e qual uma partida de UNO (Quem é que lê aquelas regras? Ninguém!).

Como se não bastasse a matemática da quantidade de “ah” num “ahahah” enviado numa mensagem, é preciso saber determinar a quantos anos-luz de distância a pessoa está pelo seu silêncio. Sim, estou a falar do ghosting — algo que, diria uma amiga, é sintoma só curável com um “deixa lá”.

Mas como o deixar ir quando, depois de horas e horas de “nãos” e “sins” para cada lado, se encontra alguém que não irrita nem escreve “heyyy”, com muitos “y” e pouca personalidade?

Chamemos-lhe Manel. Não tivemos muito — nada, na verdade. Mas podíamos ter tido. Algumas mensagens, um potencial plano de encontro e uma foto do cão dão direito ao luto. Pode parecer hipocrisia, sendo todos os assombrados um pouco ghosters, mas quem irá agora sepultar as expectativas criadas? Entramos nestas “trincheiras” com intenções diferentes e é sempre quando “não queremos nada” que descobrimos que a pessoa tem sobrinhos e torce pela tua equipa. E quando faz o favor de se tornar real, decide tornar-se um fantasma.

Numa troca de planos para aqui, troca de planos para lá, o Manel ficou doente. “As melhoras”, escrevi. E as semanas passaram. Já tinha visto isto acontecer de várias formas, já antecipava o desfecho. Quando o Pai Natal não trouxe o milagre de uma mensagem, os sintomas eram certos. Por muito que eu tenha lido que as urgências estavam lotadas com a gripe A, quem me garantia que não era apenas uma coincidência conveniente? E assim acabava, depois de tudo o que poderíamos ter passado.

O Ano Novo chegou, a teimosia ficou. Não, não fiz resoluções para 2024, portanto estava livre para errar. “Não mandes mensagem!”, disseram as amigas. Em nome da auto-estima, explicaram, e do valor próprio. Mas era tarde de mais: já estava alimentada por umas quantas comédias românticas e as suas personagens corajosas, e pela sede de vingança.

Não dele, mas de todo o sistema de “sim” e “não”, de ter levado uma carta “+4” (que equivale a mais uns anos de permanência nas apps) mesmo na véspera do feriado. Quer dizer, fingir estar doente? O SNS neste estado e ainda brincamos com a saúde?

Mandei, de forma casual, descontraída e nada cismada: “então, tás vivo?” Não lhe dei o privilégio das maiúsculas, nem de ter o verbo por inteiro. Ele tem de aprender! Então, alguma vez se faz isto e se sai impune? Vibra o telemóvel. Mensagem de Manel. “Feliz Ano Novo”, corrige ele, de antemão, a minha falta de educação.

“Estou ainda doente, com pneumonia aguda, de baixa no trabalho”, esbofeteia a minha imprudência, logo de seguida. A minha insensibilidade. Neste momento, digo-vos, preferia ter apanhado mais quatro cartas do baralho. De repente, ter dito “se calhar, morreu” na brincadeira com as minhas amigas pareceu-me um pecado.

Talvez não tenha ficado ofendido, ou tenha sido mais educado do que eu, que lhe pedi desculpas. Disse que dava notícias, mas sinceramente… Eu daria ghost a mim própria. Imagina, estares deitado em casa, nas festas de fim de ano, com pneumonia aguda (grave!) e ter uma pessoa estranha, de uma app qualquer, com quem partilhaste as coisas mais banais da tua vida, a achar que pode exigir algo de ti? Por favor.

Ou será que o Manel não tem pneumonia alguma? Toda a gente que leva ghost fica à espera do próximo fantasma. Pensa que a pessoa que vem a seguir tem como hobby planear formas de escapar de fininho, ou que é licenciada em inventar desculpas à grande. Depois, a ver se é mais inteligente desta vez ou simplesmente menos ingénua, faz coisas injustas: manda mensagens impertinentes, salta o “bom ano” e parte para a jugular.

Ao lembrar apenas das coisas que nos fizeram, esquecemo-nos de que quem está do outro lado também tem uma vida, um trabalho e uma saúde – ou falta de – para cuidar. Se calhar, se estivéssemos no seu lugar, teríamos desaparecido também. Sairíamos nada à francesa.

E, convenhamos, já estivemos lá. Tão rápido quanto fazemos like num perfil, deixámos de gostar da conversa e partimos para outra. E o ghost é o atalho usado para se chegar lá, sem que “ninguém seja ferido” – ou, pelo menos, sem que se saiba. Então assume-se que qualquer um, a qualquer momento, fará o mesmo.

Se tiver direito a outra hipótese, numa próxima ronda de UNO, juro que vou deixar de ver true crime e largar a psicologia hipocondríaca do TikTok. Acho que volto a acreditar no Pai Natal — ou no Manel.


As histórias desta crónica partem das experiências reais da autora, cujo verdadeiro nome fica reservado para as apps.

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