“Ela só fez o caril de camarão”

Conversas tristes que se escutam por aí depois do Natal.

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Nuno Alexandre
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Desconhecíamos que caril de camarão fazia parte das iguarias presentes na mesa de Natal dos portugueses. Ignorância, conservadorismo, o que seja. Não importa.

Escutámos a frase que encima este texto numa fila de supermercado três dias após aquela que supostamente seria a mais fraterna festa da família.

Mas ouvimos mais: “Eu é que fiz o peru, o bacalhau (ficou uma categoria aquele tabuleiro), o arroz de miúdos, mais as fatias douradas. Já estava farta e cansada.”

O arroz de miúdos também nos soou estranho, mas não é isso que interessa.

O que mais irritou esta desconhecida foi que uma outra presente na sua consoada pouco participou na confecção do jantar. “Ela só fez o caril de camarão”, conta a uma mulher que a acompanha na espera para a caixa self-service.

Não chegamos a perceber o grau de parentesco entre as duas clientes, nem entre estas e a mulher “do caril”. Já o grau afectivo parecia definitivamente bastante afastado.

“Ainda por cima”, prossegue em voz alta, “gabou-se de que foi o único prato de que não houve sobras”. Para concluir, num tom amargo, que nada restou porque a outra fez muito pouca quantidade, “quase nada”. Além de que foi por onde a consoada começou. “Estavam todos com fome.”

O azedume continuou, com o visível assentimento da confidente, e chegou à troca de presentes. “Dei-lhe o lenço que ela me tinha dado há dois anos. Nunca o usei, deve ter comprado nos chineses por cinco euros. Mudei o embrulho e ofereci-o de volta”, diz com ar vitorioso. E acrescenta: “Ela não se desmanchou, até disse que eu tinha bom gosto, mas sei que percebeu.”

Também a confidente tinha algo edificante… para contar: “Eu dei chocolates à minha cunhada, fingi que me tinha esquecido de que ela agora é diabética.” E riram-se muito as duas.

A natureza humana no seu esplendor, a feminina em particular.

Quando se pensava que nada mais infeliz se poderia escutar, eis que a confidente, assim que ficou sozinha, tira o telemóvel do bolso de trás das calças e faz uma chamada: “Olá, Cristina. Estive às compras com a Amélia e ela diz que tu só fizeste o caril de camarão e que não deu para nada. E, sim, recebeste o lenço que lhe tinhas dado há uns anos.”

Se houvesse um espelho por perto, teríamos confirmado a estupefacção no nosso rosto.

Felizmente, logo chegou o momento de passar os produtos pelas caixas sem operador e as vozes foram sendo abafadas pelos sons de leitura dos códigos de barras. O “bibip” sempre irritante soou agora a música salvífica.

Vem-nos à memória frases como “família a gente não escolhe” e “todas as famílias são psicóticas” (esta última é título de um livro de Douglas Coupland). E pensamos que até escolheríamos a nossa.

Recordamos como um elemento novo na família ofereceu a casa para acolher na consoada mais de 20 pessoas e que, tendo uma criança pequena, se recolheu antes de a festa terminar. Na manhã seguinte, não queria acreditar quando viu a cozinha toda arrumada e limpa, como se nada se tivesse passado.

É certo que terá demorado dois ou três dias para reencontrar alguns utensílios fora do sítio, mas ficou a saber que nalgumas famílias a festa só termina quando tudo está limpo e arrumado e se procede à distribuição das sobras. Momentos tão divertidos como os do jantar, em que todos participam igualmente na confecção, ou da abertura de prendas.

Também a troca de presentes tem regras, que evitam despesas e excessos. Cada agregado oferece prendas entre os seus elementos, mas aos outros dá apenas às crianças e jovens até aos 18 anos.

Nem todos se gostam na mesma medida nem tudo é perfeito, mas vai-se melhorando. Não se dá chocolates a diabéticos nem se devolve presentes de anos anteriores.

Às Amélias amargas deste mundo, lembramos que há cada vez mais espaços que servem jantares de Natal. Os preços não são extravagantes, mas podem começar já a poupar. Assim, no próximo Natal, não têm de cozinhar o bacalhau, o peru, o arroz, as fatias douradas…

A menos que gostem de se vangloriar como “vítimas” de outras. As Cristinas, que só fazem o caril de camarão.

Ficam a ressoar no nosso pensamento as palavras certeiras dos Quatro e Meia (canção Na Escola): “Se algo existe nesta vida que algum saber requer, é a ciência de entender como pensa uma mulher.”

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