Reocupar os lugares vazios

Aproveite-se a véspera e o dia de Natal para valorizar estarmos vivos, olhar nos olhos os que nos são próximos, apagar ecrãs, abraçar, cantar, brincar, desfrutar da companhia.

Foto
"Nas famílias grandes, começa-se cedo a lidar com ausências e lugares vazios à mesa" picjumbo.com/pexels
Ouça este artigo
00:00
04:24

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Morre-se muito. Nas famílias grandes, começa-se cedo a lidar com ausências e lugares vazios à mesa, de Natal ou não. Passada a tristeza a que se tem direito, guarde-se as memórias. Mesmo as que chegam sobre os que não se pôde conhecer. Depois, é tempo de reocupar os lugares com novos elementos: noras, genros, netos, bisnetos, amigos, vizinhos. O mesmo para as cadeiras vagas de quem não ultrapassou desavenças. Melhor mesmo é que não apareçam.

Natal é festa, celebra a vida, o nascimento de alguém que terá sido o primeiro influencer da humanidade, a julgar pelo elevado número de seguidores distribuídos pelo mundo e durante tanto tempo. Foi competente e generoso o menino que nasceu há 2023 anos.

Aproveite-se então a véspera e o dia de Natal para valorizar estarmos vivos, olhar nos olhos os que nos são próximos, apagar ecrãs, abraçar, cantar, brincar, desfrutar da companhia e deliciar-nos com as boas iguarias que a tradição sugere. Mas não arrumem as crianças numa mesa à parte. Deixem-nas partilhar as conversas e comentários dos mais velhos. É uma boa altura para as escutar, genuinamente e com atenção. Depois, podem ir brincar, zangar-se, chorar, reconciliar-se e repetir tudo de novo. Uma antevisão do que as espera na vida adulta.

“Se fecharmos os olhos e tentarmos recordar um momento da nossa infância ou adolescência em que tenhamos aprendido alguma coisa, é muito provável que esse fragmento que flutua algures no nosso hipocampo esteja associado a uma sensação positiva, envolvendo outras pessoas, adultos ou crianças”, lia-se num cartão afixado na galeria Casa da Avenida, em Setúbal, junto aos títulos que alimentam as oficinas Ir e Vir e Voltar (com Livros). Um excerto do texto de Maria Gil para Ensaios entre Arte e Educação (Fundação Calouste Gulbenkian).

São momentos assim felizes e cheios que queremos que as crianças guardem.

Neste e noutros natais, ofereça-se brinquedos, jogos, instrumentos musicais, tudo objectos que estimulem a imaginação, o sonho, o conhecimento. Evite-se brinquedos “já brincados”. Aqueles que se mexem sozinhos, apitam, volteiam, iluminam, sobem e descem, não deixando espaço para se imaginar o que quer que seja.

Ofereça-se livros, sempre livros. Desde os de pano ou de banho para bebés ao livro-álbum para os leitores já autónomos, às aventuras e BD para adolescentes ou à ficção narrativa para jovens adultos. Ciência e artes visuais também expõem os mais novos a diferentes formas de expressão plástica e a temas diversos. E há belos livros-objecto de editoras independentes. Ler e dar a ler, não apenas no Natal. Para cada um, há o livro certo. Procurem-no.

Por estes dias, ensombraram uma prática de certas famílias, a de pôr dinheiro dentro de livros. Não para ficar escondido, mas para ser descoberto. Assim se saberia se o adolescente ou jovem leitor teria lido pelo menos até àquela página. Claro que só resultava uma vez e eram quantias modestas, muito, muito inferiores a 75.800 euros…

Num daqueles estudos divulgados de forma divertida pelas rádios, dizia-se que uma das prendas que as pessoas menos gostavam de receber, a seguir a chocolates, eram molduras. Mas certamente que não lhes desagradariam se enquadrassem uma foto antiga da família (daquelas a preto e branco que todos temos e onde figuram os desaparecidos) ou uma imagem em que o adulto se visse retratado na infância, junto com irmãos, primos ou amigos. Alguns ali por perto na consoada. A moldura é o que menos importa.

“Na hora de pôr a mesa, éramos cinco:/ o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu/ Depois, a minha irmã mais velha casou-se/ Depois, a minha irmã mais nova casou-se/ Depois, o meu pai morreu”, assim começa um poema de José Luís Peixoto, do livro A Criança em Ruínas.

Com o avançar do calendário, o poeta há-de comer sozinho, mas com os ausentes por ali. “Na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco/ enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco.” Espera-se que a eles se vão juntando outros tantos e que, no final da festa, levantem a mesa, sacudam as migalhas e as mágoas.

“Há-de vir um Natal e será o primeiro em que se veja à mesa o meu lugar vazio”, escreveu David Mourão Ferreira, em Cancioneiro de Natal. Inevitável. Por isso, aproveitem, divirtam-se e deixem-se comover. O próximo lugar vazio pode ser o vosso. Morre-se muito.

Sugerir correcção
Comentar