Aquele 2 de Dezembro seria mais um dia como os outros na atarefada cozinha do La Table, luxuoso restaurante, distinguido com uma estrela Michelin, parte da oferta gastronómica do não menos luxuoso Hôtel du Palais, em Biarritz, França, cinco estrelas gerido pela cadeia hoteleira Hyatt. Mas um acontecimento nos bastidores da cozinha comandada por Aurélien Largeau, 31 anos, chef (até agora) em ascensão, iria dar muito que falar e ter consequências desastrosas para todos os envolvidos.
Foi noticiado que um empregado terá sido alvo de uma “praxe”, prática ilegal em França, e, ainda por cima, uma “praxe humilhante”, como se descreve na imprensa francesa: segundo testemunhos citados, envolveu parte da equipa, com o chef presente, e o empregado, amarrado nu numa cadeira, com uma maçã na boca e a uma cenoura entre as nádegas. Noticiou-se que os actos terão sido registados e partilhados online e que, por causa disso mesmo, a Hyatt tinha demitido o chef, sendo que este rejeita os relatos. E, tal como ele, também a presumível vítima veio entretanto a público desmentir tudo e considerar que apenas houve uma "brincadeira entre amigos", mas sem os contornos que andam a ser noticiados por todo o lado, dos jornais franceses a órgãos globais como a CNN, AFP, France 24 ou BBC.
Esta tempestade mediática a partir de Biarritz espalhou-se pelo mundo e, sem inocências interpretativas, é bom de ver que a maçã e a cenoura tiveram aqui um papel fundamental. O que se sabe é que, de facto, a Hyatt demitiu o chef, tendo confirmado a sua saída no dia 26. No dia seguinte, o jornal regional Sud-Ouest revelava em primeira mão o que estaria por trás da demissão. Refere-se um “ritual de iniciação” na cozinha do La Table, pormenorizado com base em testemunhos recolhidos pelo jornal, que resumiu tudo a uma dita “praxe humilhante”. Segundo o periódico francês, esta terá decorrido durante “várias horas”, com o empregado despido e amarrado, à “frente de membros da equipa”, “sob a autoridade e na presença do chef Aurélien Largeau”. O Sud-Ouest confirmava ainda que, nas imagens registadas, o novo empregado apareceria com uma maçã na boca e uma cenoura no rabo.
"Sabemos que uma pessoa tentou intervir para lhes dizer que parassem, mas foi expulsa" do local, diz o jornal, com uma testemunha a salientar que todos foram pressionados para estarem calados sobre o acontecimento. Os empregados terão sido avisados para apagarem quaisquer fotografias ou filmagens feitas e, lê-se na France24, o departamento informático do grupo Hyatt teria mesmo verificado e confirmado que nenhum desses registos estaria já disponível online.
A posição oficial da Hyatt foi dada pelo grupo a vários órgãos, caso da AFP. Referindo-se ao que terá ocorrido como um "incidente preocupante", acrescenta-se: "Não reflecte os valores que defendemos”, nas palavras de uma porta-voz. "Efectuámos uma investigação e tomámos as decisões apropriadas", explica. À CNN, o grupo é ainda taxativo na recusa de detalhar o que realmente se terá passado: “Devido à política da nossa empresa e para respeitar a privacidade de todas as pessoas envolvidas, não podemos fazer mais comentários”.
Outra investigação, mais formal, está já em curso: o procurador-geral de Bayonne, Jérôme Bourrie, confirmou à televisão francesa BFMTV que foi aberta investigação preliminar por suspeitas de agressão sexual e violência após o relatado pelo Sud-Ouest.
É com estes ingredientes que a história pode ser lida em muitos jornais e sites por todo o mundo.
Mas será que tudo se passou mesmo assim?
Já esta sexta-feira, a história deu mais uma volta e complicou-se ainda mais. A presumível vítima, de seu nome Lucas, veio pela primeira vez comentar o caso e, à rádio France Bleu Pays Basque, disse que tudo não passou de uma "simples brincadeira entre amigos", rejeitando as descrições feitas, particularmente as mais imagéticas: "Falam de mim com uma maçã na boca e uma cenoura no rabo, mas é falso", afiança. "O que se anda a contar não reflecte de modo algum o que se passou". "Mas vocês viram essas fotografias? Porque falam de fotografias e de vídeos que eu nunca vi? Nem sei do que falam. Não recebi nada. E, de facto, também não há nada publicado nas redes sociais."
Lucas elogia o chefe e adianta ainda, ao contrário de algumas notícias que indicam que se trataria de uma "praxe" a um jovem empregado, que trabalhou dois anos no restaurante, era assistente de Largeau e que deixou o emprego este mês por decisão própria e opção profissional. A "brincadeira", cujos contornos não revela, terá sido mesmo por sua iniciativa e como parte da despedida. Confirmando não ir apresentar qualquer queixa contra Largeau, ameaça, por outro lado, processar o jornal que lançou a história, o Sud-Oest.
O chef Aurélien Largeau, à BFMTV, já tinha considerado os "comentários difamatórios e falsos", um "ataque monstruoso" à sua "honra" e às suas "formidáveis equipas". A sua advogada, Alexandra Sabbe-Ferri, deu uma entrevista mais demorada à mesma televisão, desmentindo a forma como os factos estão a ser noticiados, ou que tivesse ocorrido qualquer alegada agressão a 2 de Dezembro. "Tudo o que foi noticiado não aconteceu de maneira nenhuma", disse ao canal.
A advogada defende também que tudo não passou de uma "brincadeira": "Nada lhe foi imposto [ao empregado]", diz, referindo tratar-se de um momento de "boa disposição" na equipa. "Foi o chef assistente [Lucas] que organizou a surpresa, que tinha apenas o propósito de ser engraçada." Sabbe-Ferri revela que o chef Largeau se sente “muito mal”, já que “nas últimas 48 horas, foi vítima de um linchamento mediático". E relaciona a demissão com uma disputa anterior entre a direcção do hotel e o chef.
Até agora, é este o ponto da situação: houve um acontecimento a 2 de Dezembro nas cozinhas do Hôtel du Palais para o qual as distintas partes têm adjectivos diferentes, onde existiu ou não certo fruto e certa raiz, usados ou não de uma forma mais dúbia; o chef foi mesmo demitido e está, de facto, a ser alvo global de uma tempestade mediática; a Hyatt considera que houve um "incidente" que não deveria ter ocorrido e utiliza essa conclusão para a demissão; a presumível vítima, Lucas, desmente tudo; as autoridades avançaram com uma investigação oficial ao ocorrido.
Em paralelo, em França, apesar de, afinal, segundo a "vítima", nada disto ter sido uma "praxe", os sectores e profissionais ligados à restauração recomeçaram os debates e críticas sobre essa prática. É proibida pela lei francesa, como lembra a AFP, embora registando ser uma tradição que continua a ser mantida em muitos restaurantes franceses. “É defendida como um teste para verificar se o pessoal mais jovem consegue lidar com as pressões do trabalho”, assinala-se. Mas há quem não concorde de todo, resume-se, salientando que nos últimos anos foram lançadas campanhas contra este tipo de violência na cozinha, com muitos profissionais a defenderem o fim destas acções.