O Natal ideal é o Natal real?
Aproveite a família que tem, digna desse nome, com qualidades e fragilidades, com a necessidade de alguém engolir um sapo ou outro em prol de um bem-estar maior, mas, não mais do que isso.
Luzes, mesas fartas, famílias numerosas — crianças e adultos irrepreensíveis —, pessoas a fazer biscoitos e a cozinhar sempre com um sorriso na cara e uma quentura que só o amor e a harmonia trazem. E prendas, muitas prendas.
É este o Natal que nos é vendido cultural e comercialmente. É-nos passada uma ideia que faz com que — atrevo-me a dizer —, a maioria de nós se sinta em falta e sinta que a vida lhe deve. E aqui só estou a considerar famílias estruturadas/funcionais. Diria que uma boa família conseguirá reunir algumas das peças: umas pecam por não terem capacidade económica para ter milhentas prendas; outras por não terem crianças; outras por não terem mão (ou gosto) para a cozinha; outras não se unem por falta de laços afetivos fortes.
Se as famílias “médias” toleram a discrepância e podem olhar para essa mensagem como uma inspiração, outras estarão tão longe, que sabem com dor, que por mais que se esforcem não alcançarão um lugar semelhante. A estas pessoas, restam dois caminhos: numa versão menos sã, fazer omeletes sem ovos e forçar a repetição do modelo social sem terem matéria-prima para tal; ou, corajosamente, assumirem uma versão “alternativa”, coerente com a sua realidade.
O primeiro cenário passará por privarem com figuras cujas relações são pautadas por tensão e que são vazias e/ou carregadas de traumas, porque como é Natal têm à força de encaixar num modelo que não é o deles. É por esta razão que quem trabalha em contextos de proteção de crianças e jovens e em cenários de violência doméstica teme o mês de dezembro. É uma panela de pressão. O segundo, terá de lidar com a acusação social de ser diferente, de estar fora da norma, do que é expectável.
Também em dezembro, os consultórios de psicologia são invadidos por este tema, com o sofrimento tremendo de quem não só tem de sarar as feridas provocadas por um contexto familiar débil, agressivo, negligente e/ou abusivo, como lidar com a culpa e insuficiência perante a sociedade que exige que um filho de um pai agressor se sinta em falta por não passar esta quadra junto dele, por exemplo.
A culpa, essa aliada da doença mental e um elemento fortemente alimentado por todos nós. Isto acontece porque avaliamos a realidade do outro com base na nossa. O erro primário que corrói a empatia e nos faz assumir comportamentos de negligência e maus-tratos emocionais face ao outro.
Se tem uma família próxima da ideal, aproveite! Goze tudo aquilo a que tem direito. Se não tem, o que é normal e não uma bizarria, aproveite também! Aproveite a família que tem, digna desse nome, com qualidades e fragilidades, com a necessidade de alguém engolir (ou alguéns engolirem) um sapo ou outro em prol de um bem-estar maior, mas, não mais do que isso.
A família aqui é um conceito lato: pode ser a biológica, parte dela, amigos, parceiros amorosos, ou, pode ser isso tudo junto. Todas as realidades são válidas.
Se tiver de assumir um plano alternativo, não tem menos valor do que ninguém por isso, antes pelo contrário, se sobrevive sem aquele calor todo, parabéns! Construa o seu sentido de união e família, sem culpas impressas por ideias deste ou daquele. Se não o tiver de fazer, parta do pressuposto que as escolhas dos outros podem não ser lidas através das suas lentes. Imaginar realidades distantes da sua realidade positiva, para pessoas próximas, para pessoas reais, pode ferir. Problema de primeiro mundo emocional. Ao outro acredite, dói-lhe muito mais.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990