Na chaminé coloque um saco para os telemóveis

Natal de amor e de luz. Natal de compaixão, de empatia, de respeito. Natal de conversas à lareira, de troca de presentes. E os telemóveis? Metidos num saco, à beira da chaminé.

Foto
"A dependência do telemóvel é tanta, que chegamos a sentir calafrios, quando não sabemos dele" Nicole Michalou/pexels
Ouça este artigo
00:00
04:15

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Desliguem os telemóveis, atirem-nos para dentro de um saco e coloquem-no à beira da chaminé, na esperança de que o Pai Natal vos recupere as conversas ao vivo e a cores, os diálogos, os afetos, o toque.

Tentem viver a essência do Natal por uns instantes, por umas horas, por um dia, mesmo que o telemóvel se intrometa com as redes sociais e as mensagens em catadupa, desejando feliz Natal, em palavras ocas de sentido. Não respondam a mensagens que não iniciem com o vosso nome. "Gil, desejo-te um feliz Natal junto da tua esposa Hermínia e dos teus filhos Alexandre e Magna." Diferente de: "Um feliz Natal para ti e para os teus." Valerá a interrupção do jantar para responder?

Só é Natal quando quisermos que seja Natal, quando sentirmos a quadra natalícia na sua plenitude. Natal de amor e de luz. Natal de compaixão, de empatia, de respeito. Natal de conversas à lareira, de troca de presentes. E os telemóveis? Metidos num saco, à beira da chaminé.

Vamos ao quarto de banho e quando damos conta, estivemos uma hora a fazer scroll de publicações que nos anestesiam, entre o gatinho fofinho, o humorista, e a make up perfeita para o Natal. Pelo meio, tentamos ver as notícias que realmente importam, ao mesmo tempo que o algoritmo insiste para que compremos aquela lingerie que deixámos no cesto de compras online. Na paragem do autocarro, impacientes com a solidão, colamos os olhos no ecrã do telemóvel, sem perceber que alguém tenta despertar o nosso interesse. Voltamos a erguer os olhos, achamos o rapaz giro, já absorto no telemóvel.

Em casa, no sofá, sentam-se juntos, um ao lado do outro, cada qual com o seu telemóvel. Não há conversa que substitua o ecrã. E com sorte, um email de trabalho, enviado à meia noite, mesmo a tempo de perturbar a rotina de sono, alterada com a nossa autorização. Levamos o telemóvel para a cama, onde o vício do telemóvel intoxica relações. Quantas vezes se interessa em saber como está o outro? Em que momentos interrompe a sua vida para verificar notificações? Os americanos, segundo um estudo da empresa de seguros para telemóveis Asurion, olham para o telemóvel 352 vezes por dia.

O ato de phubbing, de ignorar alguém para olhar para o telemóvel, esbarra no nosso dia a dia. Vemo-lo em casa, nos restaurantes, na mesa do lado e na nossa. De repente, aquela notificação a que deste valor, transformou-se num scroll eterno de parvoíce, que pouco acrescenta ao teu dia. Um estudo turco da Universidade Niğde Ömer Halisdemir, analisou as experiências de 712 indivíduos casados, com uma média de idades de 37 anos, e na satisfação conjugal, descobriu que o hábito de phubbing leva a "um aumento dos conflitos e a uma redução da intimidade nas relações". As crianças veem os pais vidrados no telemóvel, às refeições, aos serões, reivindicando a sua atenção, ou adotando o mesmo comportamento.

A dependência do telemóvel é tanta, que chegamos a sentir calafrios, quando não sabemos dele, quando julgamos tê-lo perdido. Existe até uma palavra para definir o receio de ficar sem os aparelhos de telecomunicação: nomofobia. E se queremos livrar-nos deste vício, a vida mostra-nos que é impossível. Apesar de as empresas não deverem contactar trabalhadores em períodos de descanso (apenas em casos urgentes e de força maior), segundo a regra da lei laboral aprovada em 2021, sabemos que na prática, há uma multiplicidade de atividades a cujos funcionários se atribui no primeiro dia de trabalho, um telemóvel de serviço. E quando damos conta, lá estamos nós a interromper ceias natalícias para casos não tão urgentes assim.

Na vida profissional, mas também na vida íntima, lá está ele, o intruso, com os nossos dados todos. No tempo da pandemia, um date marcado e propositadamente deixei em casa o telemóvel. Chegada ao restaurante, o comprovativo de vacinas? Ficou no telemóvel. Mas talvez possa abrir o meu email no computador do restaurante? Tento aceder à conta, num portátil estranho, que me envia a confirmação de acesso para o meu telemóvel, que não está comigo. Não jantei à luz das velas porque faltou a luz do telemóvel. O que vale é que também não se perdeu nada…


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Comentar