Há dias, numa conversa, insistiu-se muito na palavra adolescência. Ao longo dos últimos anos foi-me mais fácil ir parar à infância e falar sobre ela do que pairar sobre a adolescência. A infância sou eu, sozinha. A adolescência é a minha descoberta dos amigos. Talvez a vida seja a adolescência em contínuo. Queremos sempre fazer novos amigos, até quando alguns nos desiludiram. Queremos continuar apaixonados, até quando isso nos cansou ou nos fez perder a fé. Gosto desta adolescência. Acredito nela. Ainda sou eu, já não estou preocupada com a pele estilhaçada, mas agora ando às voltas com os novos cabelos brancos. Não é fascinante que a vida seja sempre uma inquietação? Arrepio-me de cada vez que ouço José Mário Branco cantar: “há sempre qualquer coisa que está pra acontecer”. Há. Está a acontecer, muitas vezes, sem nos darmos conta.
A adolescência: olhamos para ela como se fosse uma neblina que não se dissipa. Temos dúvidas sobre o que realmente aconteceu. Teremos? Ou é a nossa pouca vontade de a querer ver desvendada? Se a desvendarmos acaba-se o mistério. Acaba-se a adolescência e nós queremos continuar a vivê-la. Talvez seja isto. Ou talvez no meu caso seja isto.
Arrumei a infância e vejo-a agora nítida em meia dúzia de imagens que já aqui trouxe antes: a praia com as barracas azuis e brancas, o gelado a pingar na areia, cães e gatos pequenos, os grilos nas noites de Verão. Dias de chuva com galochas vermelhas. A caneca laranja onde bebíamos leite sem questionar benefícios. Um punhado de fotografias onde cabe a minha infância. Se me pusesse a fotografar remotamente a adolescência, o que encontrava? Uma paixão. Telefonemas incertos. Palavras que aparentemente ficaram gravadas, mas das quais não me lembro.
Precisarei de mais tempo para apurar o que foi de facto a minha adolescência? Puxo-a, então, até ao presente. Não tenho idade, a não ser a que os outros me atribuem. Sou a miúda que sempre foi a pé para a escola, depois apanhou o comboio para o Porto e um dia voltou a Lisboa, onde uma cidade ainda pouco acolhedora a esperava. Sou a mesma em contínuo. No fundo andei sempre em viagem.
Não sei bem o que foi a adolescência. O que é. Sei que nasceu por essa altura a angústia, mas, se quiser ser exacta com o que sinto, lembro-me de ser criança e entrar na dimensão pouco tangível do medo. O medo na infância. A angústia na adolescência e agora a braços com tudo isto e muito mais. Recebemos demasiados alertas invisíveis que nos sobressaltam todos os dias: a hipocondria que nos acena, o excesso nas prateleiras que se transforma em apatia, a seca que não sabemos bem quando começou, o frio que agora é mais quente. As guerras que nos esvaziam de esperança. Hoje além, amanhã aqui?
Como é que se diz à cabeça para permanecer sã apesar de tudo? Não é fácil.
Se a adolescência foi um viveiro para a angústia (que nunca se foi embora), também lhe consigo perceber um tom de festa. A festa interminável à qual queremos sempre voltar. Um baile que nunca acabou. Ainda sabemos a música de cor. Ainda a puxamos atrás para ouvir, agora caindo na perigosa tentação de estarmos a ser seduzidos pelo passado. Cair nesta tentação é não querer sair da adolescência. Cá estamos nós outra vez. Quando pedimos que nos dêem dez anos a menos, queremos subtrair idade suficiente que nos catapulte para uma adolescência impossível, mas é essa que nos mantém vivos. O baile interminável. A dança onde os pares foram dando lugar a rostos diferentes, mas o movimento é contínuo, a música nunca acabou.
“Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda”.
O coração ainda bate.