Tragam os estudantes para a mesa dos adultos

Como é possível, se a Academia é de estudantes, que os estudantes não tenham voz? Que sejam silenciados, invisibilizados, ignorados? Que sejam policiados, detidos, agredidos, acusados?

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Megafone P3: Tragam os estudantes para a mesa dos adultos MATILDE FIESCHI / ARQUIVO
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Quando entrei na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, dirigiram-me muitas palavras de boas-vindas, muitos conselhos vindos dos professores e dos alunos mais velhos. “Vai às praxes”, “aproveita a faculdade”, “estes quatro anos vão ser os melhores da tua vida”.

Ainda assim, foi no meu actual segundo ano de licenciatura que ouvi de um professor uma frase que até à data, e face aos acontecimentos actuais, não tem saído da minha cabeça. Foi algo deste género: o Ensino Superior difere do secundário na medida em que, no secundário, os alunos são receptores. Os professores preparam as aulas e os estudantes recebem-nas. No superior, os alunos constroem a sua formação e têm um papel activo na condução do percurso da instituição.

Não consegui deixar de pensar nesta frase, e no quanto gostava que me tivessem dito isto mais cedo. Actualmente, somos confrontados com um Ensino Superior pouco democrático, onde direcções e reitorias ignoram e desvalorizam as reclamações dos estudantes, utilizam o aparelho policial para reprimir o direito dos estudantes de expressarem o seu descontentamento e exercerem o seu direito de manifestação, algo que não era visto desde os tempos bafientos do lápis azul.

Ao passo que vemos uma larga amostra de estudantes mais revolucionários que se manifestam, que reclamam para si o seu direito de lutar pelo seu futuro e pela sua academia, vemos ao mesmo tempo uma amostra passiva no que toca aos seus assuntos, que não reclamam, que aceitam o recorrente abuso contra eles e contra os seus colegas. Isto é incompreensível: a capacidade de alguém ficar inerte ao ver a liberdade dos estudantes reduzida.

Mais incompreensível ainda é o papel e a acção das direcções das instituições. Quando uma direcção se esquece que a academia existe pelos estudantes, e para os estudantes, esquece-se do papel que desempenha enquanto direcção, e se não sabe para o que foi eleita, então significa que das duas uma: ou o que os motivava a exercer as suas funções não eram os estudantes de todo; ou algures ao longo do caminho foram alteradas as suas motivações. Não obstante, a resolução é fácil: sair e dar lugar a alguém cujas motivações estão do lado certo, do lado dos estudantes.

Esta reflexão é extensível não só às revindicações sociais dos estudantes, mas também às revindicações económicas. E, entrando então neste domínio, a divergência é ainda mais acentuada e preocupante. A propina dói. Dói aos estudantes que a vêem como entrave ao ensino superior, dói aos estudantes que têm de trabalhar para a pagar, e às famílias que têm de se apoiar nas poupanças ou trabalhar horas extraordinárias para que o estudante cumpra algo que é um direito dele. As taxas, "taxinhas" e emolumentos doem, desde o euro e meio para a cópia do exame até às certidões ou cartas de curso pagas.

Claro está que os apoios existem e são variados, desde as bolsas da DGES às dos municípios. No entanto, são escassos, chegam tarde e a más horas, não permitem que o estudante viva sem a nuvem tempestuosa da propina por cima da sua cabeça, onde a preocupação financeira ocupa espaço à preocupação com a próxima frequência. Assim chegamos ao elefante na sala (de aula): o subfinanciamento crónico do Ensino Superior, que leva também as faculdades a dependerem dos próprios estudantes para manterem as portas abertas.

Mais acentuado é quando chegamos ao segundo ou terceiro ciclo de estudos, onde nem limite máximo de propinas existe, onde se liberalizou o preço do ensino e deixou-se ao critério das faculdades explorar ou não a carteira já quase vazia dos seus alunos. Aí a propina já nem dói, corta. Corta caminhos, corta oportunidades, corta futuros. Na faculdade onde estudo, os preços dos mestrados chegam aos 6200 euros que são divididos em suaves prestações de três quartos de um salário mínimo por mês. Ora, está então destruído o argumento das bolsas, porque não há bolsa que aguente.

Já para não falar de que a menor despesa da faculdade é a propina. Onde estão as bolsas que cobrem os livros e livrinhos nas listas de bibliografia obrigatória? Não é com 87 euros de bolsa mínima mensal que se pagam os manuais de 60. Os estudantes já não entram na Almedina, na Fnac, na Bertrand. Entram nas bibliotecas, de onde muitas vezes saem de mãos vazias, já que os colegas já requisitaram os manuais e não chegam para toda a gente. Entram nas reprografias que vendem cópias ilegais, já que é a única forma de conseguirem ter acesso ao que, por serem estudantes, devia ser o seu direito. É até irónico, no meu caso em particular, ter estudantes que deveriam aprender a aplicar a lei, a ter de quebrá-la desde o início da sua formação.

Não poderia não dar uma menção honrosa à habitação, prestação essa então que destrói, reduz e até rebenta os orçamentos das famílias e dos estudantes, que têm a preocupação extra de saber se têm um tecto debaixo do qual podem ficar enquanto estudam.

Tragam os estudantes para a mesa dos adultos. Para os conselhos de faculdade. Para as reuniões dos crescidos. Dêem-nos o poder material de decisão que pregam que temos. Ninguém melhor do que nós sabe do que precisamos. Como é possível, se a academia é de estudantes, que os estudantes não tenham voz dentro da mesma? Que os estudantes sejam silenciados, invisibilizados, ignorados dentro da mesma? Que sejam policiados, detidos, agredidos, acusados?

Comecei este texto a dizer que gostava que me tivessem dito que papel era o meu enquanto estudante mais cedo. Estou agora a dizê-lo aos que chegaram, e aos que estão para chegar.

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