Entrar na universidade é uma história de ansiedade, euforia ou tristeza – em 2023 tal como em 1986

Listas de colocações afixadas nas faculdades, horas para as matrículas, 1200 escudos de propinas. Como era estudar na universidade há quase 40 anos? Perguntámos a cinco antigos estudantes.

#MVR Matilde Fieschi - Gabriela Seara, estudante da faculdade de Agronomia da Ajuda nos anos 80/90 - 23 de Agosto de 2023.
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Gabriela Seara na faculdade de Agronomia da Ajuda MATILDE FIESCHI
PP - 25 AGOSTO 2023 - PORTO - EX ALUNA  AMARIA AUGUSTA ROCHA DA UNIVERSIDADE DE BELAS ARTES 
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Maria Augusta Rocha na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto Paulo Pimenta
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“Era uma loucura”: é assim que Gabriela Seara, hoje com 55 anos e antiga aluna do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, descreve o dia em que soube que entrou na faculdade, corria o ano de 1986​. “Afixavam as pautas nos vidros da faculdade e tínhamos de ir lá ver.”

O cenário repetia-se em todo o país, nas portas e átrios das diferentes faculdades. Um mar de gente tentava ter um vislumbre das listas com os nomes de todos os alunos que se tinham candidatado. E à medida que iam encontrando o seu nome, o que se seguia era “um misto de muita alegria daqueles que tinham entrado” e “tristeza e até choro dos que não tinham conseguido”, relata.

Para Gabriela, a faculdade não era um objectivo, era o objectivo: “Até aos 18 anos não pensei em mais nada.” Por isso, passava os dias a estudar — cerca de 12 horas por dia no último ano do ensino secundário. Numa altura em que “ir para a faculdade fazia toda a diferença” — em meados da década de 1990, apenas 15,1% da população estudava além do secundário —, “quem conseguisse ter um curso superior tinha praticamente um passaporte para o emprego a seguir”. Assim, não é de estranhar que o dia das colocações fosse de emoções fortes.

Agora, ao contrário do que acontecia há quase 40 anos, o processo de candidatura ao ensino superior e o anúncio das colocações não implicam deslocações à faculdade. São feitos inteiramente online através do portal da Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES). Também as matrículas se fazem online. Assim, para quem vai entrar hoje na faculdade é difícil imaginar um cenário como o descrito por Gabriela.

Se fosse assim, hoje seria um caos ainda maior porque, ao longo das últimas décadas, o número de alunos matriculados aumentou consideravelmente. De acordo com os números da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, no ano lectivo de 1983/1984 havia 95.133 alunos inscritos no ensino superior em todo o país. No último ano lectivo de que há registos, 2020/2021, eram 411.995 os alunos matriculados nas 97 instituições de ensino superior portuguesas — números que incluem universidades públicas e privadas e politécnicos.

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O percurso de Gabriela Seara na universidade ficou ligado ao associativismo — foi a primeira mulher a assumir a liderança da Associação Académica de Lisboa, em 1991 MATILDE FIESCHI

Mas voltemos a 1986, altura em que a Internet estava longe de ser uma coisa do dia-a-dia e o processo de inscrição numa universidade demorava horas: uma epopeia que começava no fotógrafo para ter os retratos que depois seriam “anexados às fichas pessoais”, seguida de “horas infinitas a preencher cartões e papéis de inscrição”, descreve Gabriela.

Também Maria Augusta Rocha, hoje com 66 anos e que chegou à Faculdade de Belas Artes do Porto em 1990, recorda a complexidade do processo das matrículas: “Fui para lá às seis da manhã para ser uma das primeiras e conseguir as melhores vagas nas disciplinas que queria frequentar.”

Não foi a única a ter esta ideia. “Gerou-se uma grande confusão porque as pessoas em vez de fazerem fila ficaram amontoadas.” Houve até um colega que “pegou num caderno e começou a fazer uma lista para pôr ordem ali”, mas, “quando começou a escrever os nomes, pôs logo o dele em primeiro lugar”, recorda, entre gargalhadas.

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Maria Augusta Rocha entrou em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto em 1990 — foi trabalhadora-estudante e conta que as propinas e materiais eram "grande parte do ordenado" Paulo Pimenta

O dia-a-dia — para além do estudo

Os primeiros tempos de Gabriela Seara no Instituto de Agronomia em Lisboa ficaram marcados pela praxe, que recorda como “uma recepção muito bonita” e “acolhedora”. “A mim obrigaram-me a subir para um sobreiro e fingir que era um cuco. Depois cantava assim… cucu, cucu”, recorda entre risos. Estas “brincadeiras” acabaram por proporcionar laços entre os alunos do primeiro ano, porque “os caloiros agrupavam-se, protegiam-se contra os veteranos”. “Isso implicou logo um sentido de companheirismo.”

Emídio Guerreiro, de 58 anos e licenciado em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e Ciências Sociais da Universidade de Coimbra, também guarda muitas recordações dos tempos académicos, entre 1983 e em 1988. Dos grupos musicais de que fez parte (como a Orxestra Pitagórica)​, ao desporto e à Associação Académica (que acabou por liderar), o tempo estava contado, mas, no seu caso, a prioridade era o estudo: “Tinha de cumprir as minhas obrigações perante a minha família; não podia chumbar.”

Dos primeiros dias, recorda as partidas que os alunos mais velhos faziam aos que acabavam de chegar. “Quando estávamos na fila das matrículas, apareciam alunos mais velhos a dizer que tinham um apartamento espectacular para alugar”, lembra. Só que não existia — e os mais novos, acabados de chegar a Coimbra, só percebiam isso quando se deslocavam com os pais às moradas para os ver (eram tempos antes do GPS nos telemóveis).

Emídio Guerreiro foi eleito em 1990 Paulo Abrantes
1990 foi o ano da eleição de Emídio Guerreiro Paulo Abrantes
A Associação Académica de Coimbra Paulo Abrantes
A Associação Académica de Coimbra Paulo Abrantes
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Emídio Guerreiro foi eleito em 1990 Paulo Abrantes

Em Lisboa, também Gabriela Seara teve de dividir o seu tempo entre estudos e associativismo — ainda que um acabasse por ganhar terreno em relação ao outro. Tudo começou com uma reestruturação pedagógica dos cursos com a qual não concordava. Acabou por se tornar porta-voz do primeiro e segundo anos. E, no terceiro, decidiu candidatar-se à Associação de Estudantes, tendo sido eleita pela primeira vez com uma adesão baixíssima (apenas 8% dos estudantes tinham votado), o que a motivou a fechar a associação. Foi aí que “os estudantes começaram a perceber que lhes fazia falta”: aceder às fichas pedagógicas, levantar senhas para as refeições, requisitar o acesso aos campos desportivos, tirar fotocópias — tudo isto era possível através da AE.

Com novas eleições na agenda, Gabriela comprometeu-se (e conseguiu) a “tomar posse se pelo menos 80% dos alunos votassem”: “Tivemos quase 90% de participação. Ganhámos a associação como deve ser.” Assim, tornou-se “a primeira mulher presidente da Associação dos Estudantes (AE) de Agronomia”, diz, orgulhosa. O empenho era tal, que decidiu pedir aos pais para frequentar a faculdade exclusivamente dedicada ao associativismo, ou seja, sem concluir as cadeiras — e mesmo com a mãe a bater o pé, conseguiu levar a sua avante.

A aventura durou dois anos e abriu-lhe as portas da Associação Académica de Lisboa, para onde foi movida pela luta de um ensino superior sem propinas. Aí também foi a primeira mulher a assumir a presidência, em 1992/1993, num ano lectivo em que as mulheres representavam 58,3% dos estudantes inscritos nas instituições de ensino superior.

Uma breve análise aos dados do relatório 75 anos de Estatísticas da Educação em Portugal permite perceber que este número foi aumentando progressivamente desde o início da década de 1980 — em que as mulheres eram apenas 43,9% do total de estudantes. Os dados mais recentes, de 2020/2021, mostram que, apesar de as mulheres constituírem a maioria dos estudantes inscritos nas instituições de ensino superior, a percentagem baixou em relação aos anos 1990, e é agora de 53,6%.

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Gabriela Seara, da Associação Académica de Lisboa, numa entrevista na RTP em 1992 Arquivo RTP

Os custos de chegar à faculdade

Entre 1941 e 1992, o valor das propinas permaneceu inalterado: era de 1200 escudos anuais, o equivalente a 6 euros (para comparação, o salário mínimo geral em 1974 era o equivalente a 16,46 euros; dez anos mais tarde era 77,81 euros e em 1992 era 221,97 euros, de acordo com a Pordata).

Eram custos elevados? Alexandra Pinto, que estudou no Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP) entre 1986 e 1990, afirma que havia outros factores a ter em conta e ensaia uma explicação: “Acho que o ensino superior não era acessível, mas as pessoas também não se importavam muito de não ir. Preferiam começar a trabalhar. Havia uma cultura de começar a vida mais cedo: casar, ter filhos, acho que esses eram os objectivos principais dos jovens.”

Rodrigo Saraiva, hoje com 47 anos e deputado na Assembleia da República, também foi presidente da Associação Académica de Lisboa em 2001, quando estudava no Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing (IADE). Sobre as propinas, tema que marcou o mandato de Gabriela Seara, opta por lembrar que “as condições de partida de cada um influenciam a percepção dos custos” e afirma que não consegue “dizer taxativamente se era acessível ou não” estudar na universidade. Admite, contudo, que ao valor da propina se somavam “deslocações, transportes e outras despesas”, que podiam fazer aumentar o preço dos estudos.

A alimentação era uma preocupação. E as associações de estudantes tentavam dar uma resposta. Em Coimbra, Emídio Guerreiro, que assumiu a liderança da Associação Académica em 1988, lembra que, em 1992, “não havia cantinas ao fim-de-semana” e que, por isso, em conjunto com outros colegas, criou a “ração de combate”: “Íamos aos serviços sociais e comprávamos dois iogurtes, dois panados, dois pães, duas maçãs para os alunos comerem no sábado”, relata.

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Mário Soares nos jardins da Associação Académica de Coimbra, durante a Presidência Aberta. DR/ Paulo Abrantes

Sobre os custos de estudar, Maria Augusta Rocha, que estudou já nos anos 1990, é peremptória: “O valor das propinas era uma grande parte do meu ordenado.” A esse valor somava-se o custo dos transportes, livros e “dos materiais de pintura e das outras cadeiras práticas”, contabiliza. Fez a licenciatura em Pintura, já depois dos 30 anos e como trabalhadora-estudante, mas tudo isto pesava no orçamento familiar.

Ir para a universidade ficava, assim, vedado a alguns: “Não era fácil frequentar o ensino superior, principalmente tendo em conta as saídas profissionais de um curso como o meu. Em Portugal, quem é que consegue viver da pintura? Até os grandes pintores davam aulas para se sustentar.”

Notícia editada às 10h53 do dia 28 de Agosto de 2023: alteradas duas legendas, rectificando o ano de eleição de Emídio Guerreiro e o motivo da presença de Mário Soares na Associação Académica de Coimbra.

Maria Augusta Rocha e colegas na aula de pintura em Belas Artes, 1990 DR
Atelier de tapeçaria nas Belas Artes da Universidade do Porto DR
Alunos de Belas Artes da Universidade do Porto, 1990 DR
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Maria Augusta Rocha e colegas na aula de pintura em Belas Artes, 1990 DR
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