Portugal, o país onde ainda não é fácil largar o carro
Em 30 anos, o uso do carro triplicou num país que necessita de inverter a tendência para reduzir emissões. Mais que o modelo de mobilidade, está em causa toda a política de ordenamento do território.
Durante meses, Aida Silva deixou o carro em casa e passou a ir para o trabalho de bicicleta. Como não vive muito longe do Instituto Politécnico do Porto, onde trabalha, decidiu aderir a um programa no qual são disponibilizadas bicicletas à comunidade universitária para fazer as suas deslocações.
Ao fim de cinco meses, devolveu a bicicleta. “A minha ideia era ter uma alternativa. Além disso, fazia exercício físico e apanhava ar fresco. Abandonei porque não me sentia segura”, conta a técnica de 60 anos. É que o percurso implicava passar pela Estrada da Circunvalação (Estrada Nacional 12), que tem forte pressão automóvel e praticamente nenhumas condições para velocípedes e peões.
“Tentava ir sempre encostada à berma, mas muito atenta e com receio de algum encosto”, descreve. Reparava no espaço entre as árvores do separador central quando por ali passava e na possível ciclovia que poderia alojar. "Além de ser agradável, resolvia questões de segurança”, diz. Aida regressou ao carro porque o desenho da cidade favorece o uso deste modo de transporte, em detrimento de outros, uma dinâmica que está longe de ser exclusiva do Porto. Nota-se em todo o território nacional.
Na verdade, a Circunvalação é um caso paradigmático das intervenções em mobilidade no país: desde 2017 que há um projecto para transformar em avenida a estrada que passa por Matosinhos, Porto, Maia e Gondomar. Mas a EN12 pertence à Infra-estruturas de Portugal e os municípios só aceitam a transferência da tutela se vier acompanhada pelo financiamento, para fazerem as obras de instalação de uma ciclovia no meio do separador central. Aquela que Aida Silva imaginou quando por ali pedalava.
Esta história faz parte de uma lógica que ajudou a alimentar a utilização em massa do carro, com um novo máximo nos Censos de 2021, tendo triplicado em relação a 1991. Isso aconteceu à custa do transporte público e do andar a pé e é a tendência inversa ao que deve acontecer, quando as metas estão hoje viradas para a redução de emissões de gases com efeito de estufa
Quando se fala em descarbonizar transportes, como acontece na COP28, que decorre no Dubai, é inevitável falar em redução de carros (em 2019, na Europa, eram o modo de transporte que apresentava a maior fatia de emissões). Mas, para perceber como inverter o caminho, é preciso percebermos como chegámos aqui.
E não são apenas as cidades que estão desenhadas para o carro, mas todo o modelo de ordenamento do território, argumenta o professor de urbanismo da Universidade de Aveiro Frederico Moura e Sá. Ou seja, o carro permitiu que as pessoas fossem viver para mais longe do sítio onde trabalham, o que conduziu à urbanização dispersa. E, por viverem mais longe, o carro tornou-se mais necessário para vencer essa distância. “Criou-se um ciclo de reforço positivo que é difícil de quebrar” e que foi muito alimentado pela criação de uma rede de auto-estradas, avalia.
Para Ivo Oliveira, arquitecto e professor na Universidade do Minho, o investimento de milhões de euros que tem sido feito em transporte público, nos últimos anos, não é suficiente para romper esse ciclo. Porque se permite que a mancha urbana se continue a espalhar e os grandes equipamentos e indústrias continuem a ser “instalados em locais inacessíveis” ao transporte colectivo.
Não é só uma questão de políticas de mobilidade, apontam os especialistas, mas de gestão do solo. “Vamos ter de pensar nisto de outra maneira”, considera Ivo Oliveira. A entrada em vigor da Lei dos Solos de 2014, que poderia ajudar a pôr um travão na dispersão, seria um “sinal forte”, diz, mas o governo tem vindo a adiar sucessivamente a sua aplicação. Os peritos alertam para a necessidade de se olhar para as características de cada sítio, em vez de “soluções carimbo” que se replicam em todo o território.
Para Frederico Moura e Sá, há uma nota positiva a retirar do que chama de “processo de hiper-motorização” da sociedade portuguesa: mostra a eficácia das políticas públicas dos últimos quarenta anos. Isto significa que, se houver uma alteração da prática, é possível reverter a tendência de utilização do carro. Mas vai demorar tempo. Outras quatro décadas, provavelmente.
Ainda mais carros
Para já, em 2023, os números oficiais mostram que há mais carros nas estradas e, por isso, mais engarrafamentos. “Há, de facto, mais pessoas a andar de automóvel. Durante a pandemia, houve um aumento da compra de carros em segunda mão. As pessoas tinham medo e, depois, ganharam o hábito”, diz Mário Alves, especialista em transportes e mobilidade e um dos fundadores da MUBI – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta.
A mesma marca temporal, relacionada com um antes e um depois da covid-19, e as mesmas razões são apontadas por Fernando Nunes da Silva, ex-vereador da mobilidade e transportes de Lisboa, entre 2009 e 2013. Haver mais veículos em circulação tem a ver “com um certo receio que se instalou nessa altura em relação aos transportes colectivos, porque as empresas de transportes reduziram a oferta ao longo do dia, por não haver procura. Mas os trabalhadores de diversos sectores não podiam ficar em casa e, por isso, começaram a usar o carro. Houve muita gente que não regressou ao transporte colectivo”, analisa o também professor catedrático e urbanista.
Mas esses anos de pandemia foram suficientes para causar o caos actual em Lisboa e Porto? “De maneira alguma. Há uma confluência de factores. Um deles tem a ver com a disseminação do transporte em TVDE, que, de acordo com as minhas estimativas, deve representar entre 10% a 15% do trânsito. É que, ao contrário dos táxis, que estão nas praças, os TVDE estão sempre a circular e isso contribui para o tráfego,” explica Nunes da Silva. A isso junta-se ainda o que o académico considera ser a “gestão caótica” dos serviços de logística e distribuição. Mário Alves nota o acentuar de uma tendência com a pandemia: a dependência de serviços de entregas de compras online.
A continuada apetência pelo uso do carro, notam ambos os especialistas, acontece no momento em que nas duas maiores cidades portuguesas se assiste a obras de grande envergadura, relacionadas com a expansão das respectivas redes de metro – e que, na capital, se conjugam com a construção dos túneis do Plano Geral de Drenagem. Tais condicionamentos perturbam muito a circulação. Na capital, foi instituída, em Abril, uma “quinta circular”, para retirar carros do centro, mas os efeitos práticos têm sido diminutos. No Porto, o impacto dos trabalhos levou Rui Moreira a declarar, no final de Outubro, que a autarquia por si liderada não permitiria mais nenhuma frente de obra.
A imensa dificuldade em deslocar-se poderia servir, só por si, como forte desincentivo à utilização do automóvel, fazendo com que as pessoas preferissem o transporte público e também outras formas de mobilidade suave. Mas persiste a apetência pelo uso do carro particular. Até ao final de 2022, as taxas de ocupação dos metros de Lisboa e Porto ainda não tinham recuperado da queda tida na pandemia. À superfície, os autocarros ficam presos no trânsito, vítimas de congestionamento, estacionamento indevido, desvios provocados por obras ou acidentes.
Dados enviados pela Carris ao PÚBLICO mostram que, até Outubro, 17,9% dos autocarros da capital chegavam com um atraso superior a cinco minutos ao destino, um indicador que era 7% em 2021. Ainda assim, melhora em relação a 2019 (19,4%). As viagens suprimidas também seguem a mesma curva da pandemia: 2,2% em 2019, 0,4% em 2020 e 2021. Este ano, 1,9% das viagens foram canceladas. O PÚBLICO pediu os mesmos dados à STCP, mas não obteve resposta.
De qualquer das formas, a velocidade comercial dos autocarros das duas empresas pouco oscilou ao longo da última década. Retirar carros das ruas ajudaria a melhorar este indicador. É uma questão de serviço, mas também de racionalidade económica, aponta Ivo Oliveira: “Se, ao longo de uma rua, virmos seis autocarros parados em filas de trânsito, são um ou dois milhões de investimento público que ali estão e há alguma coisa que não está bem”.
À espera do autocarro
A previsibilidade é um dos factores que mais pesa na atracção dos transportes públicos. Mas também a frequência, o conforto, o número de transbordos e o tempo de viagem.
Fátima Laginha, 77 anos, utilizadora em Almada dos autocarros da Carris Metropolitana, queixa-se da inadequação da oferta. “Antigamente, existia a chamada ‘carreira da saúde’, que ligava a Praça Gil Vicente e o Hospital Garcia de Orta. Agora, a rua onde vivo deixou de ter autocarros a parar”, lamenta. “É verdade que a Carris Metropolitana aumentou a oferta, porém, as mudanças deixaram zonas na sombra”. Ainda assim, até não se considera das mais azaradas. “O problema é maior nas áreas fora do centro de Almada. As pessoas ficam à espera imenso tempo”, diz.
No Porto, Maria Pinto precisa dos autocarros dos STCP para fazer a ligação entre a estação de metro de Carolina Michaelis e Monte dos Burgos, onde está localizada a empresa onde trabalha. Mas eles nem sempre passam. “Na aplicação dos STCP, podemos ver a informação em tempo real. Mas estou na paragem, mostra que o autocarro está ‘a passar’ e, 20 minutos depois, ainda não passou”, conta Maria, de 60 anos. Já houve dias em que era suposto que passassem quatro autocarros em 25 minutos, diz, mas nenhum apareceu.
Quando está bom tempo, vai a pé e conta com a compreensão do patrão para eventuais demoras, que são depois compensadas. De regresso a casa, os atrasos dos autocarros da STCP, empresa que não respondeu às perguntas do PÚBLICO, já a fizeram perder o comboio, meio que tem de apanhar depois do metro.
Há, porém, quem tenha uma visão mais optimista. “Apesar de sermos uma entidade recente, não há dúvidas de que estamos a transportar muito mais pessoas do que em 2019”, diz ao PÚBLICO Rui Lopo, administrador da Transportes Metropolitanos de Lisboa, entidade detida pela Área Metropolitana de Lisboa e que gere a Carris Metropolitana. Marca sob a qual funcionam, desde o ano passado, quase todos os autocarros suburbanos da Grande Lisboa. “Isso explica-se porque há muito mais oferta. Quando oferecemos mais às pessoas, há mais gente”, diz o responsável, salientando que a sua frota transporta cerca de 575 mil passageiros ao dia. Uma centena de milhar de passageiros a mais do que antes.
“Se queremos atingir a neutralidade carbónica, teremos de aumentar a utilização do transporte público. E isso vai exigir mais de nós, teremos de ter mais autocarros, mas também pagar melhor aos motoristas e apostar em melhorar as infra-estruturas, para poder servir melhor as pessoas”, afirma, considerando haver margem para o crescimento do uso do transporte público, como diz ter ficado provado com a introdução, em Abril de 2019, dos novos passes Navegante e a sua simplificação tarifária.
Mas os números mostram que o aumento dos passageiros dos transportes não está a retirar carros das estradas e há ainda um caminho a percorrer para que o transporte público consiga competir com os veículos privados.
Joana Costa vive numa aldeia perto da Ericeira, no concelho de Mafra, e vai dois dias por semana ao escritório, em Lisboa. “Para chegar, faço uma viagem de carro que dura cerca de 45 minutos. A cada ida e volta, gasto combustível, pago portagens caras e, no escritório, ainda pago estacionamento. Apesar deste gasto considerável, é impensável, para mim, optar pelos transportes públicos. Seria um pesadelo. Perderia toda a mobilidade e flexibilidade de horário que tenho”, afirma.
A profissional do sector da banca utilizava o metro quando vivia na capital. Mas isso deixou de ser possível com a mudança para Mafra. “Não seria de todo compatível com a logística familiar: escola, actividades, apoio à família, supermercado e tudo o resto”, garante.
Como inverter a curva?
Nos casos de Lisboa e Porto, há um indicador favorável: por terem melhores sistemas de transportes, são também os municípios das duas áreas metropolitanas que menos dependem do carro para fazer deslocações pendulares. Mas são também os dois municípios do país que mais pessoas recebem de outros municípios. E a maioria dessas deslocações é feita de carro.
Frederico Moura e Sá olha para a agenda da descarbonização – que já entrou no discurso político – como uma oportunidade para mudar os modos de deslocação. E para envolver a população na mudança é preciso partir da “realidade actual”. Ou seja, “se alinharmos numa retórica voluntarista de cidades livres de carros ou da bicicleta como panaceia para todos os programas urbanos, arriscamo-nos a pactuar com realidade, porque ninguém nos entende”, explica. A mudança está tão distante que parece impossível. Só poderá acontecer envolvendo a maioria dos que conduzem. É preciso dar-lhes alternativas, convencendo-os dos benefícios da redução de emissões.
Para explicar que políticas de mobilidade funcionam, os urbanistas costumam usar uma metáfora: é preciso acenar com a “cenoura” (atracção) dos transportes públicos, dos sistemas de bicicletas partilhadas, de alternativas, ao mesmo tempo que se utiliza o “pau” (dissuasão), o que significa retirar espaço aos carros e fazer o condutor perceber que utilizar este meio é mais caro.
Aqui, Frederico Moura e Sá introduz uma nota sobre o polémico aumento do Imposto Único de Circulação, que não chegou a avançar: se a verdadeira intenção era descarbonizar, então, o imposto deveria incidir sobre os quilómetros percorridos, não sobre o veículo em si.
E as maiores cidades do país têm apostado nas suas cenouras. Questionada pelo PÚBLICO sobre políticas para diminuir a pressão automóvel na cidade, a Câmara Municipal do Porto responde com uma série de medidas em curso para incentivar e facilitar o uso transporte público. Está a apostar na cenoura, contando também com a expansão da rede de metro em curso e com a instalação do metrobus na Boavista, opção que tem levantado reservas.
A autarquia está preocupada com a pressão automóvel em alguns pontos da cidade, como a Via de Cintura Interna, utilizada diariamente por 150 mil automobilistas. Mas a solução para este problema passa pelo governo, aponta a câmara, que também não nomeia qualquer política de dissuasão de uso do carro. A Câmara Municipal de Lisboa não respondeu às perguntas do PÚBLICO.
Braga e Coimbra esperam metrobus
Ivo Oliveira sublinha que pensar na mobilidade à escala metropolitana já não é suficiente. Dá os exemplos de Famalicão, Guimarães e Braga, que têm muitas viagens entre si e em relação com o Porto, mas não integram a AMP. Em Braga, a maior cidade desse triângulo, o uso do carro faz-se notar nas ruas, mas as críticas da população têm-se agudizado, nos últimos meses, devido à requalificação em curso da Avenida da Liberdade, uma das mais movimentadas na cidade, e o seu impacto no trânsito. Quando a obra terminar, em Janeiro, a avenida terá passeios maiores, mais iluminação e vias segregadas para bicicletas e trotinetes.
A intervenção pretende ser um dos sinais dados pela autarquia para a transformação da mobilidade na cidade. No Plano de Mobilidade Urbana Sustentável, a ambição é clara: até 2032, o município pretende que as deslocações por carro feitas baixem até 39% (são hoje 69,7%). Até ao mesmo ano, o município quer ampliar a extensão da rede actual de ciclovias de nove para 90 quilómetros.
A subtracção do número de carros numa cidade pejada deles depende também da oferta de transporte público. No próximo ano, avançará a construção do projecto de autocarro rápido de via dedicada, conhecido por metrobus ou BRT (Bus Rapid Transit). Até 2025, prevê-se a construção de duas linhas com uma extensão de cerca de 12 quilómetros, onde circularão dez autocarros eléctricos ou a hidrogénio, cada um com capacidade para entre 120 e 150 passageiros.
O BRT é também a solução encontrada pelo município para ligar Braga a Guimarães - uma viagem de comboio demora hoje até duas horas e meia. “Temos uma reunião agendada esta semana com responsáveis da Câmara de Guimarães, porque estamos a pensar em cooperação na solução do BRT”, diz ao PÚBLICO a vereadora com o pelouro da mobilidade, Olga Pereira. Além da melhoria das infra-estruturas, o município quer incentivar as deslocações em meios suaves.
Também Coimbra espera pelo seu BRT para diminuir o papel do carro da cidade. É preciso dar primeiro uma alternativa às pessoas e só depois aplicar medidas restritivas, defende a vereadora com o pelouro da mobilidade da autarquia, Ana Bastos, ao PÚBLICO. Com vários atrasos, a obra de instalação do metrobus está ainda em curso. Ligará Lousã e Mirando do Corvo a Coimbra, além de atravessar a cidade com duas linhas.
Mas o Sistema de Mobilidade do Mondego (SMM) estará longe de resolver os problemas de um território onde a dependência do carro é elevada. Condeixa e Cantanhede são pólos geradores de viagens e não têm uma verdadeira oferta de transporte público. Ana Bastos, também professora de transportes e ordenamento do território na Universidade de Coimbra, aponta a resolução de alguns desses problemas para uma futura expansão da rede de metrobus.
A instalação do SMM pode também significar mais complexidade para quem hoje tem ligação directa de comboio ao centro da cidade (Figueira da Foz, Montemor-o-Velho, Mealhada). Com o encerramento da estação de Coimbra A, no Verão de 2024, a ligação a partir de Coimbra B passa a ser garantida pelo metrobus, o que implica acrescentar um transbordo. Mas a vereadora nota que já havia mudança de comboios em vários horários e diz que a ligação aos hospitais, por exemplo, será melhor.
A rede municipal de autocarros está também a ser redesenhada e o município quer instalar ciclovias que escapem à lógica de lazer das que já existem. No entanto, esse trabalho depende da abertura dos programas de financiamento comunitário. O mesmo é aplicável a uma rede de parques de estacionamento dissuasores que Coimbra quer instalar na periferia, para evitar a entrada de carros na cidade. “Para bater com o bastão, temos que primeiro dar a cenoura”, ilustra.
Uma região mal servida
Ao final da tarde, Diogo Anastácio espera pelo autocarro, numa paragem à saída da zona industrial de Loulé para Quarteira. “Se tivesse carro, não estaria aqui a apanhar esta seca”, diz o jovem de 18 anos, a olhar para as horas no telemóvel. “Vem atrasado, nunca se sabe quando passa”, reclama. A cadência é de hora em hora. Diogo frequenta um curso de formação profissional em cibersegurança, mas já pensa na carta, que há-de ter, se não chumbar no exame de condução.
Estamos na zona central do Algarve, que engloba os municípios de Faro, Olhão, Loulé e Albufeira, mas, mesmo aqui, onde se regista a maior densidade populacional, o transporte público é para esquecer. Só de carro se chega ao destino. A região não dispõe de uma rede transportes colectivos, com horários dos comboios e autocarros combinados de modo a servirem quem trabalha fora da área de residência. Há cerca de dois anos, a Comunidade Intermunicipal do Algarve assumiu a gestão do transporte público rodoviário, mas ainda não existe um passe intermodal, à semelhança de Lisboa e Porto. A bicicleta não serve de meio de transporte, por falta de segurança.
Na Universidade do Algarve, a estudante do curso de Fisioterapia Ema Cruz é um exemplo de como os estudantes têm dificuldade em frequentar o ensino superior, por falta de transporte público. Mora em São Bartolomeu de Messines, a meia centena de quilómetros de Faro. “Optei pelo carro, porque não há ligação directa de comboio, nem dava para usar o autocarro pela dificuldade em compatibilizar horários”. O professor Nuno Loureiro, utilizador da bicicleta, toca noutro ponto sensível. “Só os muito ousados é que arriscam vir de bicicleta, circular pela via rápida do aeroporto ou EN 125”. A ciclovia que sai de Faro não chega à universidade.
“Tudo de carro”
De pé, encostada ao espaldar dos bancos de mármore da sala de espera, Isolina Gomes deixa o olhar vaguear por entre reminiscências do pensamento e cenas do dia soalheiro projectado nas amplas janelas do Terminal Rodoviário de Estremoz. Ao lado, estão dois grandes sacos de compras. Faltam poucos minutos para a carreira 8035 da Rodoviária do Alentejo estacionar em frente e, às 13h50, arrancar para Avis. A habitante da aldeia de Cano, no concelho de Sousel, distrito de Portalegre, veio ao supermercado da cidade mais próxima, tendo por isso tomado lugar, logo pelas 8h55, num dos dois únicos trajectos do dia no sentido Avis-Estremoz – há ainda a linha 8819, ligando Avis a Évora. “Já não a apanhava há meses. Normalmente, venho de boleia”, confidencia ao PÚBLICO a mulher de 77 anos.
“As pessoas aqui fazem tudo de carro”, diz, antes de explicar que o autocarro que chegará dentro de instantes “é daqueles pequenos”, dos vulgarmente chamados ‘mini-bus’. “E para que é que é preciso mais? Não vale a pena, normalmente, vai sempre vazio, com muito pouca gente”, conta a ex-trabalhadora agrícola aposentada. “Além de mim, deve entrar ali à frente outra moça do Ervedal”, informa, quando se lhe pergunta pelo número habitual de passageiros no percurso. “Noutros tempos, as carreiras vinham sempre cheias com a miudagem da escola”, recorda a senhora, que não sabe ler nem escrever e tem os quatros filhos a viver entre o Algarve, a Holanda e a Roménia. De regresso a Cano, paga um bilhete de 3,6 euros.
No arranque da carreira do terminal, na Avenida Rainha Santa Isabel – construída onde antes passava o comboio -, está ainda Jorge Neves. Tem 19 anos e também se prepara para regressar à mesma aldeia, sede de uma freguesia que, de acordo com o último Censos (2021), tem pouco mais de um milhar de habitantes. Veio a Estremoz ter a última aula de condução, antes do exame em Évora, na próxima semana. Quando tiver a carta, admite, passará a ser menos um utente dos transportes públicos. “A oferta é pouca, só com os autocarros, não conseguimos ir a lado nenhum. É lamentável, sobretudo pelos mais idosos”, diz. Trabalhador agrícola, Jorge espera ser admitido no Exército, em Fevereiro e ficar estacionado em Estremoz. O carro será essencial para as idas e voltas à aldeia, a pouco mais de 20 quilómetros.
A conectividade entre Sousel e a cidade mais próxima, pertencente ao distrito de Évora, poderá melhorar um pouco mais, no próximo ano, com a criação de uma nova carreira, diz ao PÚBLICO o presidente da câmara. “Somos o único concelho de Portalegre sem ligação em transporte público à capital de distrito. Poderíamos ter aderido a um acordo-quadro da Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo, mas não fizemos por ser muito caro, os autocarros não satisfazem as necessidades, pois temos uma relação mais próxima com Estremoz”, justifica Manuel Joaquim Silva Valério (PS), salientando que “fica muito mais barato” a autarquia garantir, em viaturas próprias, o transporte dos cerca de 130 alunos do centro escolar da vila. Além disso, a edilidade souselense assegura, apenas às segundas-feiras, a ligação das freguesias à sede de concelho com o autocarro Mão Amiga.
“Os municípios desta dimensão, só por si e com as reduzidas receitas que têm, não conseguem assegurar melhores transportes”, lamenta o autarca, que considera essencial a concessão de “mais apoios” por parte da administração central para fazer face aos desafios da mobilidade no interior. Uma das soluções que a câmara veria com bons olhos seria a da criação de transporte a pedido. “No nosso caso, faria todo o sentido”, diz Manuel Valério, contemplando com resignação a desaparecimento das ligações de comboio na vila, em 1990. “O meu pai era ferroviário. Vivíamos junto à estação e já naquela altura os comboios iam vazios”.
As estatísticas mostram que quem não vive na cidade está mais dependente do carro. Com a escassez de transportes públicos nessas zonas, não é propriamente uma surpresa. No entanto, quando se fala em reduzir emissões, Frederico Moura e Sá alerta para o risco das soluções universais.
Dá como exemplo uma sessão pública em que participou na Murtosa (distrito de Aveiro), na qual esteve também presente um governante que falou na importância de descarbonizar. Mas a vila tem 3.700 habitantes, pouca indústria, pouco emprego e até é o concelho que mais anda de bicicleta no país, diz. “Olhando à volta, pensa-se: como é que se descarboniza ainda mais aquele território?”
Talvez a prioridade deva ser repensar o papel do carro e perceber de que forma pode ser introduzida a bicicleta como auxílio, reforçando centralidades – o largo da igreja, a escola – que alimentem sistemas de transportes públicos, diz.
Ivo Oliveira menciona também soluções de transporte a pedido, como já há em vários pontos do país, em áreas em que a procura é baixa e uma resposta mais flexível pode contribuir para a dar uma resposta. E propõe também que actores que já ligam os pontos desses territórios – prestadores de apoio social, sector da entrega de mercadorias – sejam chamados a fazer parte da solução.
É uma questão de escala, defende Moura e Sá, e as zonas mais urbanas devem ser a prioridades para reduzir emissões nos transportes. Não se deve partir de um “diagnóstico universal” e aplicá-lo em todo o país, sob pena de repetir políticas públicas que não olham para as especificidades do território e que promoveram a dispersão urbana e o uso do carro.
Com Idálio Revez e Pedro Manuel Magalhães