Um cidadão português que tenha acompanhado nos últimos meses as dificuldades do Serviço Nacional de Saúde (SNS), terá tirado por esta altura as suas próprias conclusões. Se no que se refere ao motivo as convicções poderão divergir - seja de que se tratam de problemas isolados ou de sintomas de um problema maior; seja de que a formação é inadequada em termos de número de profissionais, ou de que consistem em lutas sindicais por melhores salários - no que se refere às consequências directas na sua vida, receio que as conclusões caminhem progressivamente no sentido da unanimidade.
Nos últimos meses tivemos ampla cobertura mediática sobre as dificuldades em compor equipas de urgência de Ginecologia e Obstetrícia e sobre a recusa dos médicos em ultrapassar o limite legal de 150 horas de trabalho extraordinário, resultando no múltiplo encerramento de serviços de urgência e maternidades, bem como no constrangimento dos hospitais que se mantiveram abertos.
A somar a estes problemas, esta semana temos a notícia de que cerca de 400 (cerca de 20%) das vagas para formação de novos médicos especialistas não foram ocupadas (apesar de, no início do concurso, o número de candidatos ser superior ao número de vagas) e que este problema é especialmente relevante no que toca à especialidade de Medicina Interna, com quase de 60% das vagas vazias, tratando-se esta da especialidade responsável pelo atendimento à maioria dos doente que recorrem aos serviços de urgência.
Para contextualização, o número de vagas vazias em 2021 foi de 50 e em 2022 de 161. Segundo o relatório da OCDE Health at a Glance: Europe 2022, a média real de médicos em actividade em Portugal (descontando os médicos internos em formação e os cerca de 30% de inscritos na Ordem dos Médicos não praticantes) situa-se nos cerca de 3,85 por 1000 habitantes, próximo da média da OCDE de 4,0.
Contudo, os dados da Ordem dos Médicos (Estatísticas 2022) em conjunto com os dados do portal para a transparência do SNS mostram que apenas cerca de metade dos médicos inscritos trabalham efectivamente no SNS.
Da minha experiência, no SNS desde Janeiro de 2013, nenhum destes problemas é novo nem desconhecido. Nos últimos 10 anos, assisti ao evoluir de um ciclo vicioso em que piores condições de trabalho resultam em menor capacidade do SNS em atrair e reter profissionais, o que, por sua vez, conduz a sobrecarga das equipas e consequente deteriorização das condições de trabalho.
No mesmo período, um segundo ciclo veio a desenvolver-se: a crescente necessidade de os cidadãos procurarem uma alternativa ao SNS, que resulta numa menor vontade de o financiar e de apoiar medidas políticas que efectivamente resolvam os seus problemas - como a dificuldade em atrair e reter profissionais.
Os profissionais de saúde (tal como os de qualquer outra profissão) gostam de ouvir dizer que são quem mantém as instituições que defendem a funcionar. Que são eles que dão vida ao SNS, compondo no seu conjunto o factor mais importante para a sua existência. Infelizmente, esta percepção dos próprios não é verdadeira - sendo imprescindíveis ao funcionamento do SNS, a sua própria existência depende da percepção da população em geral de que o SNS tem sentido e de que deve existir.
Se o SNS mantiver o rumo actual de sucessivos problemas e restrições na resposta às necessidades dos cidadãos, obrigando-os a procurar outras soluções, é provável que a sua vontade em financiar e manter o SNS de pé, se torne progressivamente menor, condenando-o a desaparecer.