"Adira ao plano de saúde X e tenha 20 tratamentos gratuitos". "Desconto igual à idade". "Estamos a oferecer planos de saúde gratuitos durante um ano". "Desconto de 100% em cartão na sua consulta de avaliação".
A tendência de consolidação de grandes grupos económicos no mercado português, aliada à perda progressiva de poder de compra da população, abre uma excelente oportunidade de negócio: vender saúde ao quilo.
O que este nicho de negócio tem de tão entusiasmante é que o Estado patrocina. Formamos profissionais de saúde em demasia e pagamos-lhes pessimamente, além de abrirmos mais instituições de ensino privadas e retirarmos competências regulatórias às ordens profissionais.
A debandada dos profissionais de saúde para o sector privado consubstanciou um custo de oportunidade irrisório para estas grandes empresas "fabricarem" o seu produto: cuidados de saúde ao preço da batata. A inflação e a guerra trouxeram-nos um aumento assustador do preço dos combustíveis, dos bens alimentares, do custo de vida em geral. Contrariamente, este sector de actividade passa incólume a esta tendência... Ou melhor: os profissionais são cada vez mais mal pagos.
Quem argumenta a existência de um lobby para a não criação de faculdades privadas de saúde ficará chocado ao saber que existem médicos a pagar para trabalhar. Sim, caro leitor, porque quando lhe vendem um plano de saúde com oferta de tratamentos gratuitos, asseguro-lhe que o prestador receberá zero pelo seu trabalho.
Então se os actos médicos são gratuitos, como é que uma clínica sobrevive financeiramente? Eis o elefante na sala ignorado pelos reguladores.
O esquema de negócio por trás destas "ofertas" é a angariação de clientes que tenham outro tipo de necessidades médicas que cubram as despesas dos restantes actos médicos gratuitos.
Alternativamente, induzem os prestadores a facturar outro tipo de actos médicos que ocultem aqueles que são gratuitos. Em finanças, esta prática tem um nome: fraude fiscal. Em saúde, falamos de sobrefacturação e sobretratamento, ou seja, fazer mais às pessoas do que aquilo que elas realmente precisam.
Se já se tiver deparado com uma situação deste género, atente que não é contra o profissional de saúde que deve reclamar, mas sim com a empresa que lhe vendeu este "sonho". O leitor compreenderá que, se for dono de uma empresa, esperará que lhe paguem pelos serviços que prestar. Em saúde não é diferente. Ou espera ser tratado por um médico de excelência que lhe dará os melhores cuidados possíveis sem cobrar o valor do seu trabalho?
Os grandes grupos (hospitais privados e redes de clínicas) são o habitat natural destes negócios, porque conseguem implementar-se no mercado com um investimento em larga escala que permite minimizar estas perdas.
Isto é legal? Não devia ser, mas a ausência de regulação eficaz e o princípio da livre concorrência dão cobertura a esta prática. Os códigos deontológicos são claríssimos a este respeito, proibindo a prática generalizada de actos médicos gratuitos.
A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) também, conforme pode ser lido no art.º 7.º do DL 238/2015, que proíbe a prática de publicidades em saúde que "descrevam o acto ou serviço como 'grátis', 'gratuito', 'sem encargos', ou 'com desconto' ou 'promoção', se o utente tiver de pagar mais do que o custo inevitável de responder à prática de publicidade em saúde".
A Inspecção-Geral de Actividades em Saúde (IGAS) tem uma postura silenciosa quanto a este tema, assim como a Autoridade de Supervisão de Seguros (ASF). Então, de que servem os reguladores quando, no que realmente importa, nada regulam? De que servem os milhares de euros em taxas cobradas anualmente às clínicas e consultórios médicos?
Quando ouvir falar em pandemia, quero que recorde isto: há uma pandemia mortífera e silenciosa que todos os dias comete atentados contra a saúde pública — a saúde vendida ao quilo. Consulte o Portal da Queixa, assista às várias reportagens feitas sobre fraudes na saúde. Há vítimas reais deste modus operandi — pessoas com nomes e caras, tão reais como eu e o leitor, que vivem autênticos dramas.
Por isso, quando for ao seu hipermercado de eleição, ou quando assistir ao seu programa da tarde preferido, ou quando lhe telefonarem a dar conhecimento destas ofertas, lembre-se do que acabou de ler. Como diz o povo, "o barato sai caro" e "não há almoços grátis".