São reservadas, contidas, por vezes tímidas, e educadas numa escola que se encontra nalgumas famílias do Douro ligadas ao negócio do vinho Porto. Essas coisas das narrativas forçadas ou do ruído mediático passa-lhes ao lado e, todavia, as irmãs Luísa e Maria Vieira de Sousa, responsáveis da Vieira de Sousa – Vines & Wines, lançaram recentemente um tinto do Douro que, a nosso ver, é um dos grandes acontecimentos do ano.
Nem é tanto pelo vinho em si – que é de grande nível, atenção –, mas por causa do arrojo na escolha do formato (o velho garrafão de cinco litros) e, acima de tudo, pela transformação que ocorreu no vinho desde que nasceu. Coisas que, no seu conjunto, poderão transformar-se numa tendência para tintos de regiões quentes e em anos cada vez mais quentes. O Vieira de Sousa Reserva 2011, Edição Especial 5 Litros, não é apenas um grande tinto do Douro – é uma aula de enologia. Expliquemo-nos.
As caixas de transporte de uvas ainda estavam sujas na vindima de 2011 e já se incensava até ao infinito os tintos porque as uvas em estado perfeito deram origem a vinhos potentes, voluptuosos e ricos em aromas e sabores. Ligeiro problema: o álcool disparou para níveis nunca vistos. Consequência: os vinhos ficaram chatos, doces e enjoativos (nem dava para se passar ao segundo copo). Hoje, é fácil escrevermos desta forma porque tudo isso se descobriu na comparação com o perfil dos vinhos da colheita de 2012, muito mais frescos e desafiantes, mas, em 2011, estávamos perante uma das melhores colheitas dos tintos DOC Douro.
Hoje, é também fácil escrever que aquele que foi um ano excepcional para Porto Vintage foi, também, de forma precipitada, considerado um ano excepcional para DOC Douro. Seja como for, a loucura por 2011 foi tal que, na região, as grandes casas esgotaram a colheita num fósforo. E como os portugueses são especialistas em beber vinhos muito antes do tempo certo, hoje, encontrar um DOC Douro 2011 numa garrafeira não é coisa fácil.
Ora, o que tem tudo isso que ver com o garrafão das irmãs Vieira de Sousa? Tem que Luísa – a enóloga – e Maria – a gestora – não gostaram do perfil dos tintos de 2011 por serem demasiado alcoólicos e pesados, pelo que meteram parte da colheita em velhos garrafões de cinco litros que tinham na adega, daqueles com os tradicionais revestimentos de plástico e que já nem se vêem nas tascas. “A nossa ideia foi deixar estar o vinho nos garrafões e logo se via o que acontecia. No limite, o vinho seria bebido em almoços e jantares com amigos e família”, conta Luísa Vieira de Sousa.
Sucedeu que, ao longo do tempo, a enóloga começou a sentir que o vinho não estava chato e pesado, nem sequer parecido com a evolução do vinho em garrafas de 0,75l de outras referências e da mesma colheita. Melhor ainda, o peso dos 16% de álcool – assim foi 2011 – parecia mais atenuado. Não é que o álcool se tenha evaporado (continuava lá), mas a evolução do vinho ao longo dos anos, em vidro e não em casco, e numa superfície de contacto grande (cinco litros), acrescentou notas evolutivas interessantes e mitigou a sensação alcoólica e doce.
Como bem comentou João Paulo Martins quando nos confrontámos com este tinto, num almoço em Celeirós e à volta de uma bela língua de vaca estufada, “estes aromas fazem lembrar os Barcas Velhas e os Reservas Especiais com tempo de garrafa”. E está certo porque o brilho deste Vieira de Sousa Reserva 2011 reside nos aromas e sabores de evolução (especiarias, frutas maceradas, notas alicoradas, ervas aromáticas, zimbro e por aí fora), que lhe dão elegância, ainda que dos 16% de álcool não nos livremos. Só que, agora, 12 anos depois de ter nascido, esse volume não aborrece nem impede o segundo ou o terceiro copo. Sempre com comida, claro.
A estética também conta
Daqui até que as irmãs concordassem que valia a pena colocar o vinho no mercado foi coisa rápida e pacífica. Mais complicado era apresentar o vinho. Nos garrafões como estavam, revestidos com plástico, não dava. E passar o vinho para garrafas de 0,75l não só seria uma trabalheira como retiraria a graça do projecto, visto que o vinho está como está por ter evoluído em garrafão, ponto.
Ideias para um lado, ideias para o outro, a solução apareceu como a história do ovo e do Colombo. Corta-se o plástico, apresenta-se o vinho assim mesmo, com um rótulo bonito, e não se fala mais nisso. Feito. Bom, mas isso de mexer à mesa um garrafão de vidro pode ser um sarilho e um risco na base do vasilhame. Pois pode, mas dá-se rapidamente a volta à coisa: cola-se na base do garrafão uma outra base finória de cortiça. Pronto, assunto resolvido.
Dizemos que o lançamento deste Vieira de Sousa 2011 é um dos projectos do ano porque junta um grande vinho do Douro a um rasgo de criatividade, porque carrega na tecla da melhoria da evolução dos vinhos em garrafas de grande formato e porque – já agora – levanta uma questão interessante: será que, em regiões quentes e cada vez mais quentes – que dão origem a vinhos necessariamente mais alcoólicos –, o estágio do vinho em garrafas de vidro de grande formato (de magnum para cima) pode ser uma solução para domar vinhos que começam a ficar fora do tom em determinados segmentos de mercado, acrescentando-lhes assim elegância? Será que os produtores dessas regiões vão apostar em estratégias semelhantes? Será que vamos ver mais magnuns ou os velhos garrafões com vinhos de grande nível em cima das mesas?
Ah e tal, garrafas de grande formato são coisas para dias de festa. Pois, talvez sejam. Ah e tal, tudo isso dá mais trabalho e encarece o vinho. Pois, é verdade. Assim como também é verdade que, ao contrário do que muitos produtores pensam, a procura por garrafas magnum é crescente, e não apenas para efeitos de decoração. E por uma razão simples: 1,5 litros de vinho é o formato ideal quando vamos jantar com amigos.
Não só o vinho está com um nível de evolução melhor do que aconteceria numa garrafa de 0,75l, como, numa garrafa magnum, esse vinho faz sempre boa figura à mesa. Sim, é evidente que há aqui, também, um ingrediente estético. E daí? O vinho não é apenas um somatório de aromas + taninos + acidez + aduelas das florestas Allier ou Vosges, pois não?
Cinco coisas sabemos: uma, quanto maior volume tiver uma garrafa, melhor será a evolução do vinho desse recipiente (sempre mais fresco e jovial); duas, o nicho de consumidores que procuram vinhos brancos e tintos com idade pode ser pequeno, mas está em crescimento; três, nas 14 regiões vitícolas portuguesas encontramos vinhos de guarda fabulosos; quatro, este Vieira de Sousa 2011 é – estamos cansados da tese, mas continuaremos até que os dedos ardam no teclado – a prova de que bebemos vinhos fora do tempo certo; e, quinto, atendendo à concorrência que vai por este mundo, cada produtor tem de puxar pela imaginação para vender vinho com lucro que se veja.
Que este garrafão Vieira de Sousa tenha sido lançado por duas mulheres que fazem da sobriedade uma maneira de viver, isto, sim, é uma notícia e tanto. O que significa que não é necessário ser-se espalhafatoso e criador de narrativas forçadas para marcar a agenda. Luísa e Maria prestaram um belo serviço ao negócio e à educação dos portugueses. Que mais garrafões de outras regiões apareçam nas mesas. Elas não pedirão direitos de autor.