As perguntas por fazer

Inês Meneses escreve sobre o amor materno.

Penso muitas vezes que valeu a pena nascer, para conhecer a minha mãe e a minha filha. Estarei, porventura, a ser injusta com os outros que amo, mas agora falo do amor de onde vim e daquele que gerei. Somos três. A memória da minha mãe torna-a viva todos os dias. Parece que a vejo caminhar num dia de sol, andar vagaroso de quem contempla o que tem à frente: tudo a revelar-se num interesse maior a partir da simplicidade. É preciso termos muito amor dentro de nós para admirarmos o que é simples.

O meu irmão entregou-me um envelope cheio de fotografias minhas, dos meus pais, da minha filha e do Gaspar. O Gaspar foi um cão por quem me apaixonei um dia, quando chegou a nossa casa, muito pequenino, dentro de um caixote, a espreitar, e, mais tarde, foi parar ao colo da minha mãe. Foi com ela que morreu.

Lembro-me desse dia triste: tinha a casa cheia de amigos e fui à varanda para poder falar com a minha mãe, ouvir-lhe as lágrimas e aquilo que sempre dizemos de cada vez que um animal que amamos nos morre: “Nunca mais quero outro.” Diremos isto de tudo o que amamos: dos namorados e das namoradas, dos bichos. Só não o podemos dizer da nossa mãe: por só termos uma, a que nos soube amar e é insubstituível. Em nenhuma circunstância chamaria mãe a outra mulher. Porque sei que o amor incondicional que me ofereceu não conhece semelhante.

Voltemos ao envelope amarelo. Nele encontrei as fotografias a que regressava sempre na infância: os meus pais no dia do casamento. A minha mãe sem esboçar um sorriso. Estaria feliz? Terá sido feliz? As fotografias não nos respondem, mas dão-nos pistas sobre o passado. Tenho-as agora comigo. Olharei para elas muitas vezes ainda como se as questionasse. A minha mãe, sim, impávida. O meu pai com um ar de gozo que o acompanha até hoje. Ele soube viver melhor do que ela. É um sobrevivente de muitas tragédias evitadas. A minha mãe não conheceu a felicidade de escapar a algumas, mas é dela que me lembro todos os dias. Até ao fim.

Gosto de espreitar para dentro destas fotografias como se me colasse ao rosto da minha mãe, que já não me lembro de ver liso. Uma pele fina e clara de onde sobressaíam os seus olhos azuis. O azul que é infinito. Entre o céu e o mar. Um azul que não existe, só nos olhos dela. Colo-me ao rosto da minha mãe como se a visse agora de frente. Precisava de lhe perguntar se estava feliz naquele dia ou se aquela invulgar serenidade escondia outras coisas. Não fizemos tantas perguntas aos nossos pais como gostaríamos. É por isso que fico tão feliz por a minha filha não me poupar em testes, até naqueles em que nem passo. Não temo esbarrar na minha imperfeição diante da minha filha. Ela conhece-me como ninguém. Não me faço de forte quando, tantas vezes, sou mais fraca do que ela.

Não sou modesta na minha felicidade. Quero que ela me veja e saiba, um dia, ao recordar fotografias várias, que eu ali estava triste. Ou orgulhosa. Ou à espera de ser outra coisa qualquer. Escondemos dos nossos filhos coisas que só nos aproximariam mais deles, e eles de nós. Teimamos numa ordem rígida que herdámos, mas que de nada nos serve. Quero que a minha filha saiba exactamente quem sou, o que fui, as asneiras que fiz, os dias em que comemorei, os dias em que chorei e fiquei da idade dela, e em que ela me consolou com a sua sensatez. Como fazia a minha mãe, sempre, garantindo-me que o dia seguinte seria novo e diferente. Ela sempre teve razão. Mesmo agora que não a tenho comigo, os dias revelam-se novos, e eu aprendo a ver tudo com um prazer que desconhecia.

Enquanto o sol bate na janela, encosto o meu rosto ao dela na fotografia sem respostas.

Sinto a urgente necessidade de ser feliz por ela.

O coração ainda bate.

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