Zapping com holocausto ou a linha vermelha da Palestina
Do que se trata, em directo como nunca, é do sacrifício de um povo. Quem esteve em silêncio está a tempo de falar. De vir para a rua.
1. Estes são os dias mais cruéis do nosso tempo. O insuportável que é suportado dia a dia por quem pode. Fazer zapping ajuda a não ver, mas a barbárie continua lá. Culminando 75 anos, Israel massacra os hospitais da Palestina, arrasa o Norte de Gaza e torna o Sul inabitável. Tudo com a colaboração dos EUA, mais um bloqueio sem precedentes à imprensa livre. Se vemos a barbárie é porque dezenas de jornalistas palestinianos já morreram para isso, continuam a arriscar a vida, e as pessoas em Gaza, tantas tão jovens, nos mostram tudo. A dignidade no meio do insuportável. Sacrifício e graça humana.
Bombas, êxodo, sede, fome, soterrados sem socorro. Mais mortos civis do que em toda a guerra da Ucrânia. Mais crianças mortas do que em todos os conflitos desde 2019. Muito mais ruínas do que alguma vez foi possível numa faixa de 2,3 milhões de pessoas. Centenas de milhares em risco além dos corpos nas valas comuns. Ou abandonados sob fogo de snipers. Ou comidos por cães selvagens junto ao Al Shifa, hospital em que ao longo dos anos entrei para falar com médicos e feridos em incontáveis ataques de Israel, e agora o mundo conhece por dentro. Onde Israel continua a não provar que o Hamas tem um quartel-general, além de umas armas e uns restos, que podem lá ter sido plantados.
Que outra “democracia” pode destruir um hospital, matar bebés, crianças e adultos, torturar incontáveis mais, deixando agora 7000 pessoas à fome, ao frio, à vista de toda a gente, sem apresentar provas, e não ter o mundo a impedir? Não haver uma força de interposição ali, sanções? Que outra democracia, senão os EUA, pode ajudar a armar esta limpeza étnica, a razia de todas as estruturas do Norte, empurrando os vivos para um sul onde não poderão ficar? Israel já disse que não “aceitará uma entidade independente em Gaza”. Ficou escancarado nos últimos dias, enquanto víamos o que um exército faz a um hospital.
Um jovem médico do Shifa foi entrevistado ao telefone (pela grandiosa Amy Goodman, no Democracy Now). Explicou emocionado porque não deixava os seus doentes: “Se eu os deixar, quem cuidará deles? Não somos animais.” Quando estas palavras me chegaram, já ele tinha sido morto.
O gangue de Bibi alterna entre chamar-lhes animais e monstros.
2. Nunca o racismo de Israel e aliados ficou tão exposto. Nunca as vidas palestinianas importaram tão pouco para os poderes. E nunca as ruas se encheram com tanta gente contra isso. Ao 43.º dia, este sábado, milhões vão voltar a sair pelo cessar-fogo. O fosso entre rua e líderes é cada vez maior. No Ocidente/Norte como no mundo árabe.
Anteontem, em Washington, a polícia de choque atirou manifestantes judeus e aliados pelas escadas, arrastou-os pelos cabelos, gás de pimenta na cara, sem aviso de dispersão, porque exigiam um cessar-fogo. Na Arábia Saudita, pessoas com algum sinal de solidariedade, como o lenço palestiniano, estão a ser detidas. Crentes que estavam em Meca a rezar por Gaza foram interrogados por horas. Israel manda calar os regimes árabes, e eles obedecem, com poucas excepções. Trudeau, a ovelha canadiana que até agora votou ao lado dos EUA, aparece compungido contra a morte de crianças e bebés, mas foi incapaz de exigir um cessar-fogo. Como foram incapazes o Parlamento britânico e o líder trabalhista (apesar da revolta de muitos dos seus deputados). Como a União Europeia continua a ser incapaz, apesar da brava Irlanda, a que se juntam sinais de Espanha, da Bélgica. Macron, em nome das crianças e bebés pediu, mas atenuou palavras depois.
O Estado de Israel é um filho da Europa e escrevo num diário português. Recomecemos por aí.
3. Quarta-feira, uma mulher e duas crianças portuguesas morreram num bombardeamento no Sul de Gaza. Israel empurrou um milhão para Sul mas também bombardeia o Sul. A casa caiu na cabeça da família, só se salvou uma bebé dos escombros, há um vídeo. A família estava à espera de ser retirada. O Ministério dos Negócios Estrangeiros “podia ter feito mais” por estes e outros palestinianos com nacionalidade portuguesa, disse à RTP Ahmed Ashour, pai e marido de quem morreu. “A resposta era sempre: ‘OK vamos esperar mais uns dias, não conseguimos…’ O ministro devia demitir-se.”
João Cravinho já está demissionário. Não por Gaza, pela crise política portuguesa. Lamentando as mortes, Cravinho disse que era “mais uma prova de que este não é o caminho”, de que “precisamos de parar agora estes bombardeamentos”. Enunciou, como se fossem sinónimos: “Pausa, cessar-fogo, trégua, pouco importa desde que o resultado seja a cessação de bombardeamentos que estão a provocar vítimas civis.” Anda a diplomacia mundial há 42 dias encravada nas diferenças entre estas palavras, e Cravinho não consegue escolher uma com clareza no momento destas mortes.
Costa foi mais claro a seguir o exemplo de Guterres.
E Marcelo? Primeiro destratou o representante da Autoridade Palestiniana como não se imagina que fizesse com um diplomata ocidental, de Israel, ou qualquer Estado poderoso. Uma displicência primária. Achei que ia emendar mas não, continuou a falar como se os protestos fossem uma tempestade num copo d’água. Como se Gaza não vivesse uma calamidade. Quarta-feira, o site da Presidência publicou uma nota a lamentar a morte dos cidadãos portugueses “num bombardeamento”. Faltou escrever “israelita”. Leia-se todo o texto: nem uma palavra que associe Israel àquelas mortes. Que condene o bombardeamento numa zona que o próprio atacante designou como “segura”. Além das condolências, faltou tudo na nota da Presidência.
Quantas crianças desfeitas são precisas? Quando é que o Presidente falará da ocupação de décadas? Da lei internacional?
Pode inspirar-se em Lula, que foi abraçar os cidadãos à saída do avião, quando chegaram de Gaza a salvo, depois de muito trabalho diplomático e firmeza. E Lula disse que nunca se viu em nenhuma guerra crianças e bebés serem alvos assim. E que, se o Hamas foi terrorista, a resposta de Israel o é igualmente.
Um Estado que é potência ocupante, e portanto nem pode invocar autodefesa, como lembrou anteontem Francesca Albanese, a relatora especial da ONU. Esse direito só se aplica ao ataque de outro Estado.
4. Nos últimos dias cresceram vozes inspiradoras. Depois de elogiar Guterres, a ministra espanhola Yolanda Díaz disse que as instituições internacionais não estão a cumprir a missão para que foram criadas. São reféns de vetos bipolares. Ao tomar posse, Pedro Sánchez exigiu a Israel cessar-fogo imediato e declarou o reconhecimento da Palestina.
Entretanto, Biden, Blinken e Austin estão a ser processados por cumplicidade em genocídio. Grupos de direitos humanos pediram formalmente ao Tribunal Penal Internacional que investigue Israel por crimes de guerra, incluindo genocídio.
Vamos com “quase seis semanas de Inferno” em Gaza, “total desrespeito pelas leis humanitárias internacionais”, uma tentativa “deliberada de estrangular” a acção no terreno, e “o maior deslocamento de palestinianos desde 1948”, disse anteontem Philippe Lazzarini, comissário-geral da UNRWA, a agência da ONU criada para os refugiados de então, quando Israel foi fundado.
Os palestianianos chamam a esse momento a Catástrofe: Nakba, em árabe.
Esta foi também a semana em que ouvi o ministro israelita da Agricultura dizer e repetir na TV que sim: é a Nakba 2023.
5. Na Nakba de 1948 não havia redes sociais. Na de 2023 vimos aquela estrada — que é das mais antigas da Humanidade —, a que corta Gaza de Norte a Sul, com um êxodo de dezenas de milhares, doentes, amputados, feridos, idosos que mal podiam caminhar, mães a puxarem vários berços, gente a sucumbir pelo caminho, bebés a morrerem nos braços dos pais.
O Livro do Êxodo no tempo do Instagram. No telefone por exemplo da formidável Bisan Wizard: 2, 3 milhões de seguidores, como a população de Gaza. Só que a maioria deles fora, e falando em inglês. Bisan é, sozinha, uma televisão.
Enquanto isso, grandes media como CNN, NBC, CBS, Financial Times, Channel Four, ZDF estão embedded (inseridos) nas tropas israelitas. Estive na guerra do Iraque em 2003, como no Afeganistão em 2008. Havia jornalistas embedded, mas também todos os outros, nós. Ou seja, vários pontos de vista. Estar embedded tem sempre constrangimentos. Os repórteres com Israel estão sujeitos a controle de movimentos e censura prévia. Mas a grande diferença neste caso é que Israel não permite a entrada de todos os outros. Ou seja, uma total distorção da cobertura, só do lado das tropas em Gaza, e ainda mais de mil enviados em Israel, e falando de Israel. Enquanto os palestinianos morrem dentro de Gaza. E a Cisjordânia evoluiu para uma verdadeira zona de guerra, com grande controle de movimentos, palestinianos presos e torturados pelo exército, mais a milícia dos colonos ao ataque, e ainda bombas. Agora incluindo também raides a hospitais.
Se não fossem as redes saberíamos muito pouco do lado palestiniano. Enquanto isso, Israel conta com um tempo de antena esmagador.
E continua a organizar visionamentos do ataque do Hamas a 7 de Outubro para jornalistas e outros convidados. Incluindo na residência do embaixador em Lisboa.
6. A Reuters explicou esta semana como Irão e Hezbollah foram apanhados de surpresa pelo 7 de Outubro. O Hamas não os informou apesar do apoio que deles recebe, o que só reforça o carácter nacionalista, anti-sionista do Hamas. Isto é sobre terra, aquela terra, não é sobre matar judeus. Quem insiste que o Hamas ataca porque quer matar judeus ilude a questão: o Hamas quer a terra. Toda. Como Israel quer a terra. Toda. Não fará a paz, não dará um Estado aos palestinianos, e os EUA sabem. Paremos com essa conversa.
Haverá paz quando for feita justiça aos palestinianos ao fim de 75 anos. Nunca haverá paz pelas armas.
7. Entretanto, a Palestina é e será uma linha vermelha. A barbárie interpela todo o campo dos direitos humanos, do pós-colonialismo, além das perseguições a judeus, e ao seu auge, o Holocausto. É possível a quem está ligado a isso de alguma forma relativizar ou ignorar o que acontece agora? Um holocausto no sentido mais arcaico e sacrificial da palavra: queimar completamente. Do que se trata, em directo como nunca, é do sacrifício de um povo.
As vidas palestinianas estão a ser sacrificadas à nossa frente.
Guterres tem repetido que a História julgará, além do que os tribunais terão a julgar. Biden, Blinken, Leyen, Scholz, Sunak, não esqueceremos. Idem para os cínicos que os defendem, atacando quem está nas ruas pela vida. A inversão é tal que quem pede o cessar-fogo é acusado de terrorismo. E muita gente fica em silêncio, temendo ser chamada de anti-semita.
Mas quem está na rua já está para lá do cinismo, como o planeta. Do colapso ambiental à barbárie em Gaza.
Só há um lado da vida nesta guerra, que não presta contas a bárbaros, e quem esteve em silêncio está a tempo de se juntar. De vir para a rua contra a morte, pela liberdade.
Em Portugal, será também a mais bela forma de honrar Abril.
Jornalista e escritora, ex-correspondente do PÚBLICO em Jerusalém