Um principezinho de outra cor
Uma versão portuguesa da famosa história criada por Antoine de Saint-Exupéry. Aqui, um principezinho sai do seu planeta e viaja de ilha em ilha até chegar a África. Não é branco.
Um dia alguém perguntou a Adélia Carvalho: “Será que podias escrever um livro com um principezinho da nossa cor?” A educadora de infância, editora e livreira ficou “sem saber o que responder”, contou ao PÚBLICO. Mas de vez em quando voltava à questão.
“Mais tarde, sozinha, tentei imaginar algumas coisas: e se o principezinho fosse um menino negro? De que falaria ele? Viria de algum planeta, de alguma ilha? Como estaria vestido? Para onde quereria ir? E o aviador existiria? Estas e muitas outras perguntas passaram a habitar a minha cabeça”, descreve num email.
Depois, foi convidada a visitar a Escola Internacional de São Tomé e Príncipe, para dar a conhecer alguns dos livros que assina e a partir deles orientar oficinas de escrita e leitura. “O meu pensamento foi logo para a escrita do tal livro com um principezinho negro”, recorda.
A pandemia de covid-19 inviabilizou a viagem para São Tomé, mas a ideia da história permaneceu. Adélia Carvalho concorreu às bolsas de criação literária da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e à bolsa Criar Lusofonia, do Centro Nacional de Cultura. “Ganhei as duas bolsas e a narrativa começou a ganhar corpo. Rapidamente, entrei num diálogo com o Principezinho do Saint-Exupéry.”
O resultado começa assim, pela voz do aviador, que se tornará astrónomo: “Tinha seis anos quando encontrei um velho livro ilustrado com imagens de África. Fiquei deslumbrado com todas aquelas paisagens, os animais, as pessoas, mas sobretudo com a cor, a cor do dia e da noite.”
Também nesta versão há uma avaria num avião que fica parado numa ilha e que leva ao encontro das duas personagens principais: o piloto e o pequeno príncipe.
Adélia Carvalho, editora da Tcharan, sintetiza assim o “atrevimento” de reescrever o Principezinho: “Esta é uma narrativa de um principezinho negro (por oposição a um modelo de principezinho loirinho, branquinho e muito bonitinho, uma quebra dos nossos heróis estereotipados) e de um aviador retido numa ilha à espera de conseguir consertar o motor do seu avião.”
É assim que se dá o encontro, no capítulo II: “Acordei com o sol a queimar-me a cara e uma voz repetitiva. – Podes desenhar-me uma ovelha, por favor, desenhas-me uma ovelha? Levantei-me de um salto, chamado à realidade bruscamente, como se tivesse caído à água sem contar. Esfreguei os olhos, olhei na direcção da voz que perguntava e só via uma grande árvore, uma árvore falante. – Quem está aí? – Sou eu. – Eu quem?”
Enquanto a reparação prossegue, o adulto vai desenhando para o menino. “Desenhos com vontade de ultrapassar os limites do espaço onde nasceram, de conhecer o mundo e de nele encontrar a dignidade que é deles/as por direito”, defende a autora de títulos como Era Uma Vez Um Cão (ilustração de João Vaz de Carvalho), A Crocodila Mandona (ilustração de Marta Madureira), Elefante em Loja de Porcelanas (ilustração de André da Loba).
O que é importante não se vê
Também este principezinho tem uma flor de que cuida, mas de quem se afastou e a ela quer voltar. Mesmo depois de conhecer muitas outras, todas únicas.
Diz o principezinho quase no final da narrativa: “— Meu pequeno homem, transforma uma árvore numa mesa e deixarás de ter frutos, tens de sonhar para lá da realidade, a grande invenção dos homens não é fazer mesas, é sonhar para lá da realidade. O que é importante não se vê.”
Adélia Carvalho resume assim este seu livro: “Uma história protagonizada por um principezinho negro que viaja de ilha em ilha e se depara com diferentes personagens com as quais dialoga e interage; sempre numa perspectiva de aventura e de viagem, de descoberta do eu e do outro, do amor, da amizade e da complexidade da vida.”
A escolha do ilustrador espanhol Guridi fez-se pelo “seu traço minimalista e despojado de excessos”. Sem se “colar” às imagens do Principezinho original, não deixa de para elas nos reenviar. No entanto, como diz a livreira do Porto (Papa-Livros), “conseguiu criar o seu próprio principezinho e dar-lhe a poeticidade necessária para nos apaixonarmos por esta personagem assim que a vemos na capa”.
Muito lhe agrada (e a nós também) a “estratégia simples com que representa as ilhas, um simples contorno de mancha à volta das personagens que nelas vivem”.
O essencial pode ser invisível aos olhos, mas também é precioso poder observar-se imagens bonitas.